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Limbo na fiscalização de vistorias, um risco crônico dos edifícios antigos em Fortaleza

Embora tenha lei que obrigue inspeções periódicas nas construções, Fortaleza não fiscaliza sua execução. Bombeiros confirmam cinco mortos e cinco desaparecidos no edifício que desmoronou

Escombros do edifício Andrea, que desmoronou em Fortaleza.
Escombros do edifício Andrea, que desmoronou em Fortaleza.AP

Havia sinais de problemas na estrutura do edifício que ruiu em Fortaleza e deixou, até a manhã desta quinta-feira, cinco mortos e cinco desaparecidos. Rachaduras nas paredes e colunas deterioradas foram relatados por sobreviventes do desmoronamento do prédio de sete pavimentos que existe há 37 anos. A administração do condomínio chegou a chamar um engenheiro, e uma reforma no local foi protocolada por ele no Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Ceará (CREA-CE) na véspera da tragédia. O engenheiro responsável pela obra apenas descreveu genericamente na ART – documento obrigatório para a prestação do serviço – que seria feita uma reforma de recuperação da estrutura e pintura, sem detalhar quais problemas encontrou no prédio. As vistorias periódicas nas edificações de Fortaleza são exigidas por uma lei municipal, mas a fiscalização delas nunca chegou a ser feita pela Prefeitura. Como o edifício Andrea tem mais de 31 anos, estaria obrigado por lei a realizar vistoria a cada dois anos.

Bombeiros confirmaram que, por enquanto, sete pessoas foram resgatadas com vida do edifício em Fortaleza. As vítimas fatais são três mulheres e dois homens, sendo que três pessoas ainda não foram identificadas. Tragédias como esta tem sido cada vez mais comuns no Brasil e levantam a discussão sobre um problema crônico no país: o profundo limbo que existe tanto na fiscalização quanto na legislação sobre a manutenção de edifícios antigos. Como não existe uma lei federal sobre o assunto, são os próprios estados e municípios que tem decidido sobre exigir ou não a realização das inspeções prediais periódicas. O problema é que, mesmo as cidades que já decidiram pela obrigatoriedade delas e estabeleceram suas próprias normas para as inspeções nem sempre as realizam. Em abril deste ano, dois prédios construídos de forma irregular em Muzema, no Rio de Janeiro, desmoronaram. A cidade também tem uma lei que obriga a realização de vistorias. Especialistas em engenharia ouvidos pelo EL PAÍS afirmam que o país tem o desafio de estabelecer normas nacionais para as vistorias e especializar engenheiros para que a manutenção seja feita adequadamente, minimizando a possibilidade de desmoronamentos que trazem risco tanto para os moradores quanto para a sociedade.

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A vulnerabilidade dos edifícios é um problema latente em Fortaleza. Há quatro meses, um prédio residencial localizado na Maraponga, um bairro de classe média da cidade, foi totalmente evacuado após um de seus pavimentos ruir. O edifício, construído de forma irregular sobre um solo sensível à presença de água, segue isolado até hoje. Os proprietários acabaram indiciados porque a estrutura não tinha sequer o alvará de construção. O desmoronamento parcial não deixou vítimas, mas retomou o debate na cidade sobre as falhas de diligência na lei de inspeção predial aprovada em 2012 e regulamentada em 2015.

O prefeito de Fortaleza, Roberto Claudio, chegou a justificar na época que os custos para implementar a inspeção predial seriam muito altos para o cidadão comum. E defendeu a necessidade de um novo pacto com a sociedade para implementar a lei num contexto de crise econômica. "Não é só o laudo da inspeção predial que a lei prevê, ela também prevê que se faça o laudo e as correções que esse documento indicar. Isso terá à iniciativa privada, ao cidadão e ao setor comercial-empresarial um custo muito elevado para além do custo tributário", explicou à época ao jornal local Diário do Nordeste. A estimativa do poder municipal era de que o valor da implementação das vistorias exigidas pela lei que está em vigor poderia chegar a um bilhão de reais. Mesmo assim, a questão não foi rediscutida nem pelos vereadores nem pela gestão municipal.

Após a tragédia no edifício Andrea, o prefeito minimizou o fato de a lei existir e não ser aplicada. "Os imóveis são privados. A inspeção não precisa ser lei. São responsabilidades de manutenção que todos nós temos. O mais importante papel da Prefeitura neste caso é garantir que as obras tenham tido as licenças", declarou à imprensa. O prédio que ruiu no bairro Dionísio Torres, na zona nobre da cidade, foi construído de forma regular. A Prefeitura, porém, informou na última terça-feira que não tem registros em seus órgãos sobre reformas na edificação. O EL PAÍS voltou a procurá-la para saber se há algum monitoramento dessas estruturas, mas não obteve respostas.

"Em Fortaleza, não existe nenhum tipo de fiscalização. O que a gente ainda faz aqui é buscar investigar para que as obras nessas estruturas sejam realizadas por profissionais adequados", diz o presidente do CREA-CE, Emanuel Maia Mota. Ele afirma que o conselho vai reunir o histórico de intervenções no edifício Andrea, que não está digitalizado por conta da idade do prédio, e que, como a última reforma foi protocolada no órgão por um técnico, uma comissão interna será criada para averiguar se houve negligência do engenheiro responsável. Um inquérito também foi instaurado pela Polícia Civil do Ceará para apurar as causas do desabamento, e testemunhas já começaram a ser ouvidas pelas autoridades.

No Brasil, não há uma cultura de manutenção predial sólida. "Quando a gente fala em manutenção, é sobre fazer laudos de vistoria que servirão para elaborar um plano de manutenção por profissionais técnicos. Com ele, os administradores dos edifícios podem se organizar e se planejar para executar as ações necessárias dentro do seu rol de prioridades. Hoje a gente se preocupa muito com a aquisição de bens imóveis, mas não damos atenção para a manutenção", afirma Maia. Por isso, ele conta que CREAs de diferentes estados estão se articulando para fazer uma campanha de conscientização da população, já que o problema é crônico em todo o país.

A capacitação profissional mais especializada para as inspeções é outro desafio que se soma aos problemas sobre a exigência legal das vistorias e a fiscalização na garantia de segurança das construções. "Estamos falando de uma especialidade dentro da Engenharia Civil. A sociedade ainda não entende essa capacitação e acha que o engenheiro civil sabe fazer tudo. Dentro de um edifício tem subsistemas, instalações hidráulicas, elétricas, hipermeabilizações. É um mundo de coisas, e o engenheiro não sai da graduação preparado para analisar tudo isso", explica o vice-presidente da Associação Latinoamericana de Patologia das Construções, Enio Pazini. Nesse sentido, ele acredita que não basta estabelecer leis com a exigência das vistorias, mas também indicar a capacitação dos profissionais que vão fazê-las e investir para oferecer esse aprimoramento em cursos de especialização.

Pazini também pontua que o Brasil ainda carece de uma norma nacional para direcionar como devem ser feitas as inspeções prediais e defende a necessidade de sua proclamação urgente pela Associação Brasileira de Notas Técnicas (ABNT), diante dos vários casos de desmoronamentos de prédios, pontes e viadutos no Brasil. Ele argumenta que tanto os edifícios quanto as obras de infraestrutura urbana no país estão ficando velhas e, por isso, precisam agora um olhar especializado para prevenir desastres. "É como se agora precisássemos ter geriatras para as estruturas de concreto porque elas precisam de uma atenção especializada", explica.

Outra forma importante de prevenir desastres como o de Fortaleza, considera, é que os moradores observem se há danos anormais nos seus apartamentos e edifícios. Rachaduras nas paredes, infiltrações persistentes ou danos nas colunas podem ser sintomas de problemas na estrutura. A orientação é de que o administrador do edifício seja comunicado de chame um engenheiro. "Ele atuaria como um clínico geral e poderia indicar profissionais específicos", sugere Pazini.

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