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Cinema
Crítica
Género de opinião que descreve, elogia ou censura, totalmente ou em parte, uma obra cultural ou de entretenimento. Deve sempre ser escrita por um expert na matéria

Que arte a sua, renegado Allen

Woody Allen gosta de Nova York em todas as estações, mas temos de admitir que a chuva é uma boa aliada da poesia

Selena Gomez e Timothée Chalamet em Dia de chuva em Nova York. No vídeo, trailer oficial do filme.
Carlos Boyero
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Nem a idade avançada de Woody Allen nem o cerco da opinião pública (embora a Justiça o tenha declarado inocente) ao qual foi submetido sem misericórdia pelos de sempre, nem as inquisições ancestrais e abjetas, nem o boicote a seu cinema nos Estados Unidos, a sua autobiografia e uma série de televisão conseguiram anular a imaginação do cineasta para inventar histórias que carregam o selo de seu cérebro prodigioso, criar situações, personagens e diálogos insólitos que são um presente para o público, provocar o sorriso, o riso e o sentimento. Imagino que fazer filmes seja um refúgio magnífico em meio à tempestade, e nos últimos anos esta tem sido implacável com ele. E seu cinema também oferece proteção aos espectadores incuravelmente fiéis, com a costumeira sensação de prazer, de que o tempo voa quando esse diretor está inspirado. E poucas vezes o estado de graça o abandona. E é muito raro que você esmoreça, fique entediado, que não saia animado da sala de cinema, que não se identifique com as sensações que ele retrata.

Woody Allen gosta de Nova York em todas as estações, mas temos de admitir que a chuva, tão desconfortável e triste para os espíritos prosaicos, é uma boa aliada da poesia. O título que mais me fascina na história do cinema, o que mais me intriga e me emociona é Rain People, ou seja, gente de chuva (filme lançado no Brasil como Caminhos Mal Traçados). E, é claro, que alguém como Allen intitule seu último trabalho como Um Dia de Chuva em Nova York (A Rainy Day in New York) prenuncia algo muito bonito, com aroma de melancolia, equívocos, encontros inesperados, surpresas. E é assim. Acho que não dei nenhuma gargalhada, mas o sorriso não desapareceu de mim durante uma hora e meia. Nem tampouco um bem-estar duradouro ao sair do cinema e recordar o filme.

O jovem protagonista sempre teve uma vida muito fácil, por pertencer a uma família com muita grana. Chama-se Gatsby, como aquele ser tão lutador e tão trágico que uma vez acreditou na luz verde, sem saber que seu sonho já havia ficado para trás, na escuridão ardente. Mas não tem nenhuma clareza sobre onde focar sua existência, muitas incertezas o invadem, não quer que a confusão seja seu epitáfio. Enquanto isso, diverte-se gastando dinheiro no pôquer e determinado a passar um fim de semana memorável e libidinoso com sua namorada, mostrando-lhe a cidade que ama e da qual se afastou fugindo das pressões da família.

Mas em Manhattan tudo pode acontecer. Que sua amada fique hipnotizada por um diretor de cinema em crise, um roteirista com aparentes soluções para aplacar o tormento do criador, um voluptuoso ator latino-americano, sedento por carne jovem. E que à espera de que a namorada retorne à terra e lhe dê um pouco de atenção, a angustiada perambulação do rapaz por Manhattan resulte em surpresas que podem mudar sua vida. Como o sedutor reencontro com a irmã mais nova de uma antiga namorada, o contato com uma puta majestosa, a impagável conversa com a mãe, que lhe revela com naturalidade e pragmatismo segredos supostamente inconfessáveis de sua juventude. E esse sujeito tão confuso aprenderá algumas coisas muito claras, e a não mentir para si mesmo. E não sabemos o que aconteceria na vida real, mas, como o cinema pode se permitir licenças líricas, é lindo que se encontre no Central Park e em meio à chuva com a pessoa que acabou de seduzi-lo.

Allen narra tudo isso com muito encanto, com seu estilo inconfundível, isento de amargura, com tanta compreensão como afeto por seus personagens perdidos. E Timothée Chalamet está magnífico. Também Selena Gomez. Allen escreveu para eles papéis pelos quais serão lembrados. Eles o agradeceram renegando-o por causa das acusações das quais havia sido absolvido, doaram ao #MeToo o salário que receberam neste filme, se mostraram chocados por terem trabalhado com o grande pecador. Imagino que seus assessores de imprensa lhes garantiram que teriam um grande futuro na indústria cinematográfica como compensação por sua deslealdade.

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