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Tribuna
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Censura de Bolsonaro e disputa de valores

Devemos defender a liberdade de expressão, mas precisamos olhar de perto o que move os militantes ativos em direção às igrejas conservadoras

Grupos opositores à abertura da mostra Queermuseu protestam no Parque Lage, no Rio de Janeiro, em agosto de 2018.
Grupos opositores à abertura da mostra Queermuseu protestam no Parque Lage, no Rio de Janeiro, em agosto de 2018.Tomaz Silva (Agência Brasil)
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A política está se tornando um campo de disputas morais. Cresce a censura contra livros, histórias em quadrinhos, exposições de arte e peças teatrais. O controle da formação moral das crianças é um dos focos prioritários, como na censura às palestras do ciclo Aventuras do Pensamento, pela Caixa Cultural, voltado para um público de 10 a 15 anos. Peças que abordam, mesmo indiretamente, a questão de gênero viram alvo de vetos governamentais. O presidente responde justificando sua missão de “preservar os valores cristãos, tratar com respeito a nossa juventude, reconhecer a família como uma unidade que tem que ser saudável para o bem de todos”. Ainda que diga, retoricamente, não se tratar de censura, assume, na prática, a censura. E dobra a aposta. O que lhe dá essa petulância toda é a certeza do apoio de parte considerável da população.

Nossa primeira reação, diante do ataque escancarado à liberdade de expressão, é defender o Estado laico, denunciando o papel das igrejas que legitimam e disseminam a agenda conservadora. Essa explicação ofusca, contudo, a peculiaridade de nosso momento político. Milhões de pessoas endossam essa agenda, logo precisamos olhar de perto seus motivos. A defesa obstinada dos valores familiares está no centro da disputa política em nossos dias. Mas não se trata de legitimar qualquer família. Muito pelo contrário, os novos arranjos familiares — com dois pais ou duas mães, com mães sozinhas — tornam-se alvo de ataques. A missão, representada nas palavras de Bolsonaro, é afirmar a família patriarcal como única digna de reconhecimento. Sem ela, a ordem do mundo fica ameaçada. Prova disso é o vídeo recente de Edir Macedo, pregando para que mulheres não estudem e se submetam aos maridos, a fim de garantir o único modelo familiar que funciona: aquele no qual é o homem quem manda.

O retrocesso aconteceu muito rápido. Há pouquíssimo tempo estávamos passando leis por direitos de casais homoafetivos, estávamos ostentando orgulhosamente, em nossos carros, adesivos com arranjos familiares diversos. Parece que o jogo virou, e os conservadores hoje são mais fortes. Por quê?

A insuficiência de políticas distributivas, a baixa qualidade dos serviços públicos, a falta de garantias coletivas, o desmonte do Estado de bem-estar social deixam grande parte da população desassistida. Só a família acolhe essas pessoas. A igreja também, mas muitas delas, justamente as que mais crescem, reforçam os valores das famílias.

Ao redor do mundo, o caminho da austeridade, com consequente encolhimento das instituições do bem-estar coletivo, produziu uma segunda camada de privatização: o avanço dos valores familiares tradicionais. O tema é abordado por autoras como Wendy Brown ou Melinda Cooper, em livros ainda não traduzidos no Brasil. Aproximando a questão econômica da mudança cultural, Brown associa o crescimento do conservadorismo à dissolução de princípios fundamentais da vida social: igualdade, cidadania, autonomia, liberdade de expressão, tolerância, pluralismo ou secularismo. Esses valores costumavam sustentar a vida em sociedade, mas, claro, quando eram capazes de garantir condições materiais para uma existência minimamente digna.

A ruptura desse pacto transforma o papel das instituições, principalmente da escola. Um dos objetivos principais, da agenda familiar patriarcal, é proteger as crianças de qualquer exposição a valores que reforcem sua autonomia. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou a dizer que o nome de seu ministério está errado, pois “educação” é assunto da família. A escola deve dedicar-se ao “ensino”: ensinar a ler ou treinar para um ofício.

Essa visão representa uma mudança radical no papel da escola. A educação ética, voltada para o exercício da cidadania e para o aprendizado de valores que regem a vida em sociedade, sempre foi atribuição da escola — ao menos nas democracias. Ultimamente, vinham se tornando cada vez mais presentes temas como: respeito à diversidade étnica e sexual, normalização de opções que não se enquadram no modelo heteronormativo, combate ao machismo, ao racismo, à homo e à transfobia.

Está em curso uma insurgência conservadora contra tudo isso, tendo as famílias tradicionais como militantes ativos. Iniciativas como o movimento Escola sem Partido incorporam a missão de reivindicar a educação moral exclusivamente para as famílias. Acusações de “doutrinação”, usadas contra as universidades ou a mídia, fazem parte da mesma cruzada. O conhecimento e a reflexão, neste projeto, devem ser reduzidos a conteúdos estritamente técnicos, tidos como neutros. Um sentimento de afronta e de hostilização move uma parte considerável da sociedade a reagir contra os valores emancipatórios que costumavam ser associados ao pensamento, à cultura, à arte ou à ciência.

Claro que algumas igrejas têm enorme responsabilidade na disputa moral que está em curso. Mas adquirem tanta capilaridade porque respondem a angústias e ansiedades legítimas. A ideia de que o papel do Estado é proteger os cidadãos está cada vez mais distante do dia a dia das pessoas. Sem nenhuma instituição que os acolha, jovens sem perspectiva, idosos desassistidos, desempregados, desalentados ou mães solteiras não têm mais ninguém a quem recorrer. Só as famílias e as igrejas oferecem alguma proteção. É o caso concreto dos aposentados no Brasil, avós que acolhem todo mundo em momentos de crise; jovens que resolvem casar para dividir o aluguel; filhos que demoram mais para sair de casa, ou nunca conseguem. Quanto mais restrita a proteção social, mais relevante será a família tradicional e mais contumaz sua ingerência sobre a vida daqueles que protege. Garantias sociais, ao longo da história, serviram como instrumento eficaz para a libertação de mulheres e homossexuais do jugo patriarcal. Aqui mesmo, políticas públicas foram criadas assumindo mulheres como detentoras de direitos, justamente pelo papel emancipatório dessa escolha — é o caso do Bolsa Família.

Interromper a marcha do conservadorismo é uma tarefa bem mais árdua do que combater o poder das igrejas. Precisamos criar um mundo onde as igrejas não encontrem tanto espaço vazio para extrapolar o âmbito da fé, dominando a política e a vida pública. Precisamos de estruturas acolhedoras para quem quer se desgarrar da família tradicional, constituindo outros arranjos coletivos. O combate feroz às desigualdades é um primeiro guia. Mas proporcionar convivência e pertencimento também é importante na sutura de nosso tecido social esfacelado.

Não adianta tentar esconder que a esquerda defende o ensino de valores pautados pelo pluralismo e pelo respeito à diversidade sexual. E que essa é também uma missão da escola. Governos de esquerda nunca distribuíram mamadeira de piroca. Mas buscaram ensinar mulheres, homo e transexuais a exercerem seus direitos; ensinaram o respeito a opções sexuais fora dos padrões heteronormativos. Isso deve ser motivo de orgulho. Esse é o mundo que queremos criar. Se o pai não quiser vir, teremos seus filhos e filhas ao nosso lado — algumas mães também virão. Só precisamos conquistar a confiança dessas pessoas, que acreditem em nossos projetos para libertá-los do jugo econômico da família patriarcal. Quais são eles?

Tatiana Roque, filiada ao PSOL, é matemática, filósofa e professora da UFRJ.

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