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Quando os EUA passaram a considerar racista pintar o rosto de preto

A maquiagem do rosto para representar um afrodescendente tem raízes nos tempos da opressão e representa um ódio que ainda perdura

Yolanda Monge
Fotograma do filme 'O cantor de jazz' (1927).
Fotograma do filme 'O cantor de jazz' (1927).GETTY

Racista, doloroso, ofensivo são alguns dos muitos qualificativos que se aplicam à ultrapassada prática de pintar o rosto de preto ou marrom para representar pessoas negras. Não importa a cor da pele que se tente imitar, seja qual for, se for diferente da cor com a qual se nasceu, é considerado racista nos Estados Unidos e no Canadá e em vários países, inclusive o Brasil. Fantasiar-se pintando o rosto de preto desumaniza e despreza todo um grupo, enquanto alimenta os piores estereótipos atribuídos aos afrodescendentes, dizem ativistas e especialistas.

Justin Trudeau, primeiro-ministro em funções do Canadá, foi a última figura pública a ter de pedir desculpas, em plena campanha eleitoral por sua reeleição, por um antigo erro de julgamento. Certamente ele não será o último ao qual um instantâneo do passado o acuse de incoerência, nem será o primeiro a ousar alegar falta de conhecimento para desculpar seu comportamento. A ignorância, neste caso como em muitos outros, não serve de desculpa.

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Como as palavras e as ações, as imagens importam, provocam danos e certamente têm consequências. Para William Brooks, presidente da influente Associação para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP na sigla em inglês), a maquiagem do rosto para representar um afro-americano tem raízes nos tempos da opressão e representa o ódio a toda uma comunidade que ainda hoje perdura.

Assim, as razões pelas quais é tão ofensivo pintar o rosto tentando parecer uma pessoa negra são simples: evocam uma história de racismo e de dor cuja ferida continua aberta. Se nos Estados Unidos faz cerca de 200 anos que os artistas começaram a pintar o rosto de preto para imitar e rir dos escravos negros em espetáculos musicais da época, na Europa medieval, fosse na França ou na Itália, os comediantes usavam máscaras negras para representar comportamentos antissociais grosseiros, violentos ou próximos à bruxaria.

Nos Estados Unidos, o símbolo mais popular entre as chamadas blackface é o do personagem Jim Crow, representado em meados do século XIX pelo ator Thomas Rice. Posteriormente, as tristemente famosas leis de segregação racial tomaram o nome dessa figura que tentava ser engraçada. Jim Crow continuou vivo no século XX. No filme The Jazz Singer (O Cantor de Jazz), o ator Al Jolson atuava com o rosto pintado de preto e lábios exagerados delineados em branco. Atores norte-americanos como Shirley Temple, Judy Garland e Mickey Rooney também usaram maquiagem preta para pintar seus rostos em filmes.

Hoje, de vez em quando ressurge por arte da hemeroteca ou dos livros de final de curso tão próprios da iconografia cinematográfica norte-americana alguma fotografia que complica a vida de personalidades políticas que se veem obrigadas a entoar um mea culpa. Alguns recorrem à muito usada frase de que eram outros tempos. Outros clamam inocência, garantindo que nunca o fizeram com a intenção de ofender alguém. Alguns até negam serem eles e usam a máscara de blackface para proteger seu nome.

Esse foi o caso do governador da Virgínia, Ralph Northam, que primeiro reconheceu e depois negou ser a pessoa que aparece com o rosto pintado de preto em uma página do anuário universitário de sua escola de medicina em 1984. Anthony Sabatini, congressista republicano da Flórida, declarou que a foto que o mostrava com o rosto pintado de preto era de sua época de adolescente no colégio e que “estava fora de contexto” hoje. Quem renunciou ao cargo de secretário de Estado da Flórida foi Michael Ertel, que se deixou fotografar em 2005 fantasiado do que ele acreditava ser uma mulher afro-americana depois da passagem do furacão Katrina para uma festa de Halloween.

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