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Coluna
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Essa terra ainda vai tornar-se uma imensa Bacurau

Uma crônica política sobre a teimosia em ser gente e permanecer no mapa brasileiro

Cena do filme 'Bacurau'. No vídeo, trailer oficial.
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Em ‘Bacurau’, é lutar ou morrer no sertão que espelha o Brasil
‘Bacurau’, a distopia brasileira contra o Governo de Bolsonaro

— Quem nasce em Bacurau é o quê? —pergunta a mulher do Sudeste recém chegada à bodega do povoado.

—Gente —responde o menino, mesmo que a pergunta fosse dirigida a uma vivente adulta, a dona do estabelecimento.

São muitos os sentidos do filme. Diversos como os gêneros e subgêneros que viajam da ficção científica ao western-spaguetti. Dizer que ali mora gente, no entanto, talvez seja a grande moral política da fábula sangrenta.

Rapaz, é como se aquele sertão altivo, apesar de riscado do mapa, puxasse com o violeiro Carranca (personagem de Rodger Rogério, o lendário compositor do Pessoal do Ceará) um coro de provocação ao resto do Brasil: Ai essa terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se uma imensa Bacurau.

Uma imensa Bacurau, repito o refrão, na ideia de sobrevivência, na arte de teimar em ser gente e algum cheirinho de vingança (humanum est) nas ventas. Pego bigu no fado do Chico e do Ruy Guerra para tomar o vilarejo do Velho Oeste pernambucano como exemplo de reação organizada ao tratamento ao plano de extermínio por parte dos gringos invasores aliados ao coronelismo-coxinha do prefeito Tony Jr., na interpretação fria e magistral do ator paraibano Thardelly Lima.

E não se trata de forasteiros comuns do clichê de um bang-bang qualquer. Os americanos brincam de jogos mortais, como em um reality, para eliminar os habitantes da aldeia sertaneja —ponto sofisticadíssimo do roteiro do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.

Na sessão que vi no Petra Belas Artes, SP, em pleno Dia da Pátria, o público vibrou e aplaudiu como nas minhas jornadas vespertinas no cine Eldorado (anos 1970), em Juazeiro do Norte, ou no Veneza (década 1980), no Recife. Catarse geral e irrestrita. Bacurau ultrapassa a fronteira do “cult” e resgata esse bafo no cangote dos cinemões de rua nas tardes de sábado e domingo. Deixávamos o escuro da sala para voltar à claridade da rua repetindo os gestos, estripulias e as mungangas dos atores. Ah, O voo do Dragão, com Bruce Lee, que voadora espetacular!

Corta para 2019. Saltei da poltrona e dei de cara, na esquina da Consolação com a Paulista, com manifestantes de luto contra a ordem bolsonarista. Saí imitando o “abuso” genial de Lunga, o vingador representado pelo ator cearense Silvero Pereira.

Ai essa terra ainda vai cumprir seu ideal... É lindo que o cinema tenha esse poder de resposta ao sufoco político e ao risco que a própria arte corre sob a asfixia da extrema direita. Ai essa terra anda muito amaldiçoada, cruz credo, quanto abuso, é tortura nas “senzalinhas” de supermercados, é censura em exposição de charges (Porto Alegre), Bienal do Livro (Rio de Janeiro), peça do grupo teatral Clowns de Shakespeare (Recife) e página rasgada de material pedagógico pelo governador da modernidade fake de São Paulo.

É o horror no campus universitário, é ciência proibida em nome das trevas, é uma nostalgia da ditadura da moléstia dos cachorros, é a febre do rato, é o estampô-calango, é a besta fubana, é a bobônica, como diria o DJ-narrador Urso, em indumentária “Rap Power”, nos cafundós bacurauenses. Na vida mais ou menos real, o amigo Urso é o artista Jr. Black, o Barry White do Agreste, gênio da música cosmopolita pernambucana, escutem esse cara, senhoras e senhores.

As mulheres de Bacurau miram-se no exemplo das heroínas de Tejucopapo, as destemidas que expulsaram, a pau e pedra, os holandeses que pretendiam saquear o vilarejo a 60 km do Recife, em 1646. Aí vemos Carmelita (Lia de Itamaracá), a matriarca que representa a utopia da água e da fartura da nação semiárida; Domingas (Sônia Braga), com sua blasfêmia alcoolizada e a valentia do cuidado rotineiro com o povo; a Teresa (Bárbara Colen) que retorna mais forte ainda... Sem falar na Deisy (Ingrid Trigueiro), que dá um tiro de escopeta ao melhor estilo Chigurh (Javier Barden) no faroeste americano Onde os fracos não têm vez (2007).

Ai essa terra não está nada em transe, velho Glauber, essa terra está é fora do mapa, como registram os desautorizados satélites do Inpe sobre a destruição da Amazônia. Será que precisamos de algum milagroso psicotrópico, caríssimos Kleber e Juliano, para acordar da letargia? Quem sabe mais aulas do professor Plínio (Wilson Rabelo), né? Seriam os vingadores perigosos discípulos de Paulo Freire?

Acho que tomamos, saindo um pouco do bang-bang para a ficção científica, foi aquela pílula antialucinógena servida na água pelo Grande Benfeitor, personagem do conto A fé dos nossos pais, do escritor norte-americano Philip K. Dick. A pílula fitoterápica, me lembra aqui o amigo e fotógrafo alagoano Juarez Cavalcanti, deixou toda a população lesada, em uma eterna lombra alienante.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (Companhia das Letras) e do recém-lançado “Crônicas para ler em qualquer lugar”, com Gregório Duvivier e Maria Ribeiro (editora Todavia), entre outros livros. Comentarista do programa “Redação” (Sportv).

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