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Em ‘Greta’, Marco Nanini desnuda o homem banal que transgride na velhice

Grande vencedor do Cine Ceará 2019, longa-metragem retrata um enfermeiro homossexual que aceita a própria identidade. “Gosto de ver a liberdade explodir da tela”, diz o ator mais conhecido pelo tradicional Lineu

O ator Marco Nanini, depois da entrevista.
O ator Marco Nanini, depois da entrevista. Rogério Resende

"Pode pensar em outra, mas tem que me chamar de Greta Garbo". É assim que Pedro, um enfermeiro de 71 anos que trabalha em um hospital público, interpela seus amantes e interesses sexuais de uma noite. Na pele de Marco Nanini, protagonista de Greta, que chega aos cinemas no dia 10 de outubro, Pedro passa pela vida como um peso morto, um homem demasiado banal, sem família nem amigos —com exceção de Daniela (vivida por Denise Weinberg)—, cujo único alento é sua obsessão pela diva hollywoodiana.

Greta, longa de estreia do diretor Armando Praça, debutou em solo nacional como grande vencedor do 29º Cine Ceará (Festival Ibero-americano de Cinema), depois de passar pelo Festival de Berlim, em fevereiro. O enredo centra-se no enfermeiro que, na necessidade de encontrar um leito disponível para a amiga com uma doença terminal, ajuda a dar fuga a um jovem prisioneiro (Jean, vivido por Démick Lopes) que estava acorrentado em uma maca e leva-o para casa. O envolvimento com o jovem faz com que, na velhice, Pedro comece a moldar sua verdadeira personalidade.

Livremente inspirado na peça cômica Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá —escrita no anos 1970, quando a possibilidade de se falar da homossexualidade ainda limitava-se ao deboche e à caricatura—, o filme atualiza esses códigos e volta-se para o melodrama. Com referências ao cinema do alemão Rainer Werner Fassbinder, com planos fechados e ambientes claustrofóbicos (a trama se desenrola essencialmente no hospital e no pequeno apartamento do protagonista), Greta foge da representação da homossexualidade associada à juventude, à beleza e às armadilhas que essa combinação pode criar.

Acostumado com a visão de Nanini como Lineu, de A Grande Família, aquele funcionário público careta e pai da tradicional família brasileira, o público encontra-o em nus frontais, em cenas de sexo com corpos mais jovens que o seu. A "coragem" e "generosidade" do ator em doar-se tão abertamente à personagem foram os temas mais comentados depois da estreia no Teatro São Luiz, em Fortaleza. “Eu não percebi se eu tinha coragem ou não. Porque, quando você tem alguma autocrítica ou um pudor de mostrar isso ou aquilo você fica com medo”, disse ele ao EL PAÍS. “Para mim, foi natural, principalmente porque é um personagem de 70 muito transgressor. Isso de poder mostrar a pessoa velha vivendo e sofrendo como outra de qualquer idade é um presente para qualquer ator. Me entreguei a esse personagem tanto quanto me entreguei ao Lineu”, completou. “Eu gosto é do bom personagem, para que ele goste de mim."

Sobre ficar nu diante das câmeras, em "uma situação terrível" —"Porque eu estou gordo, né?", ri—, o ator conta que a parceria com o diretor foi fundamental. "Desde que vi Armando pela primeira vez, tive total confiança nele como pessoa e como artista. Gostei desse filme nas minhas mãos porque considerei que era a hora de mostrar como estou. Aos 71 anos, é bom que as pessoas vejam logo tudo". As cenas de sexo, em saunas ou na casa da personagem, não foram um problema. "O sexo é natural, é mais uma forma de expressão. É igual a comer, dormir, amar. É tão importante quanto tudo isso".

No filme, essa naturalidade acentua-se com uma iluminação que "pinta" os rostos dos atores e quase destaca-os do cenário, como se fossem quadros. Esse recurso constrói uma intimidade maior entre personagens e espectadores, ainda que, na sessão de estreia, um ou outro se levantasse para deixar a sala, incomodados por carinhos considerados explícitos. Em Greta, os códigos da beleza clássica são usados para humanizar as personagens, todas marginalizadas em diferentes pontos de vista. A direção joga também com paradoxos: o hospital, em princípio tão pudico, aparece como um ambiente extremamente sexualizado, enquanto as saunas gays são espaços de profundas reflexões pessoais.

"Pedro é um homossexual como muitos, um homem aprisionado pelas condições de sua vida particular, pelos preconceitos do dia a dia, um homem sofrido porque é pobre. Aos 71 anos, ele começou a se moldar. O que nós vemos é uma disfunção dessa realidade, é ele buscar um caso de amor, nessas condições, e viver aquilo com prazer, apesar dos problemas", resume Nanini.

Liberdade

Gestado há dez anos por Armando Praça, o filme chega ao público brasileiro em um momento de crise no audiovisual e suspensão de um edital para selecionar produções com temática LGBT. Apesar disso, a equipe do longa afirma que ele é "mais que um panfleto ou um ato de resistência". Nanini, que viveu a ditadura como um momento "penoso e difícil", acredita que é difícil interromper os avanços conquistados por essa comunidade. "A grande maioria dos espectadores embarcou no filme, sem preconceito nenhum. O governo, em todas as suas instâncias, é que é cerceador. Eles é que são indecentes, essas histórias, não", afirma.

Com 50 anos de carreira e aproximadamente 20 filmes, o ator reconhece que a televisão abre mais portas para tratar certos temas, ainda que de modo mais leve. Não descarta, no entanto, voltar às telonas com personagens "fortes e ricos" como Pedro. "Eu gosto de ver tudo isso, gosto de sentir a liberdade explodir da tela. O pecado foi o homem que inventou", diz. E sua Greta, livre de pecados e pudores, é sublime.

A reportagem viajou a convite do Cine Ceará.

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