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Assim o Chile manobrou para evitar a extradição de Pinochet

A detenção do ditador na Inglaterra em 1998 transformou a Justiça internacional

A ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher visita Pinochet em sua prisão domiciliar (1999). 
A ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher visita Pinochet em sua prisão domiciliar (1999). IAN JONES (afp / getty images)
Mario Amorós

Naquela sexta-feira, 16 de outubro de 1998, às onze e meia da noite, em uma Londres outonal, fria e chuvosa, Augusto Pinochet estava em convalescença no quarto 801 da London Clinic, no bairro de Marylebone, quando o agente da Scotland Yard Andrew Hewitt lhe comunicou formalmente que estava detido, em conformidade com o pedido de prisão emitido pelo juiz espanhol Baltasar Garzón para fins de extradição. “Eu vim aqui em uma missão secreta, tenho passaporte diplomático e direito a imunidade! Não podem me prender! Isso é humilhante! É uma vergonha que este país faça isto comigo!”, Pinochet respondeu indignado. Do lado de fora do quarto, na entrada, ficaram de guarda dois policiais, e outros em diferentes pontos da clínica. A partir desse momento, Garzón tinha o prazo de 40 dias para formalizar o pedido de extradição.

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O acordo tácito da transição, a impunidade de Augusto Pinochet, tinha ido pelos ares. Começava a batalha judicial que mudou o Chile e determinou o ocaso da existência dele. A partir daí, e até o final de seus dias, teve que se submeter aos tribunais, primeiro na Europa e depois no próprio país. Naqueles primeiros dias do calvário judicial, na clínica só tinha ao lado uma velha biografia de seu admirado Napoleão. Talvez tenha parado especialmente nas páginas que se referem à batalha de Waterloo.

Nas primeiras horas de 17 de outubro, o embaixador Mario Artaza ­--diplomata de carreira, militante socialista, exonerado em dezembro de 1973 e exilado nos Estados Unidos durante a ditadura-- chegou à London Clinic. “Solicitei garantias de que Pinochet estava bem. Subi por alguns corredores na penumbra e, acompanhado por uma enfermeira, entrei na sala onde o general estava. O médico me disse que tinha ficado muito agitado com a ação-surpresa da polícia. Quando entrei, estava dormindo, mas despertou, eu me apresentei, lhe disse que havia ido até lá a pedido de seu médico e expliquei brevemente do que se tratava.” As únicas palavras de Pinochet foram: “Não entrei neste país como bandido. Entrei com um passaporte diplomático. Já entrei muitas vezes desta maneira”. O presidente Eduardo Frei estava no Porto, na Cúpula Ibero-Americana, e também recebeu a notícia repentinamente naquela madrugada.

Em 17 de outubro, às 10h15, hora de Londres, Artaza enviou ao ministério uma cópia do mandado de prisão de Pinochet, assinado pelo magistrado Nicholas Evans, com a tradução em anexo. “Para conhecimento imediato" do ministro, o embaixador anotou à mão. Na mesma tarde, a Embaixada do Chile no Reino Unido enviou uma nota oficial de protesto ao Foreign Office [o ministério de Relações Exteriores britânico] pela detenção, porque violava a "imunidade diplomática" do ex-ditador. (...) Naqueles momentos iniciais, a estratégia do Governo se apoiava em dois elementos: a defesa irrestrita de sua imunidade diplomática no Reino Unido e a busca de apoio na Espanha à tese adotada pelo procurador-chefe da Audiência Nacional, Eduardo Fungairiño. Imediatamente, os diplomatas chilenos se reuniram com as esferas mais altas do Foreign Office, incluindo o ministro Robin Cook, para expor suas razões: Pinochet desfrutava de imunidade, a transição estava em perigo, no Chile havia causas judiciais contra o ex-ditador, o Reino Unido assumiria uma grave responsabilidade séria se ele morresse lá...

“Tenho passaporte diplomático e direito a imunidade!”, protestou Pinochet ao ser detido em uma clínica

Com a proverbial fleuma britânica, o Governo anglo-saxão expressou que entendia toda aquela litania de argumentos, mas enfatizou que se tratava de uma questão estritamente judicial e, também, que ele não possuía imunidade, já que não estava credenciado como diplomata. E também apontou, repetidas vezes, que o ministro do Interior, Jack Straw, a quem caberia a resolução final, adotaria sua decisão somente depois que o processo judicial estivesse esgotado e que nesse momento somente ele poderia levar em consideração as razões humanitárias ou,então, alternativas, como a expulsão do país.

(…) Na tarde de 28 de outubro, de Londres, em um relatório com a classificação de “secreto exclusivo” dirigido ao ministro José Miguel Insulza, o subsecretário de Relações Exteriores do Chile, Mario Fernández, informou-o de suas reuniões com o chanceler Robin Cook; Basil Hume, cardeal primaz da Igreja Católica Britânica; lorde Douglas Hurd, membro proeminente do Partido Conservador; lorde David Owen, ex-ministro das Relações Exteriores; Menzies Campbell, porta-voz de política externa e defesa do Partido Liberal Democrata na Câmara dos Comuns; bispo Frank Sargent, chefe de Gabinete do Bispo de Canterbury; o bispo anglicano Pat Harris; e o trabalhista Tony Lloyd, segundo do Foreign Office, a quem ele expôs a rejeição de seu Governo à "legislação extraterritorial".

“Em relação à prisão preventiva do senador Pinochet, indiquei que se tratava de uma detenção arbitrária, já que o senador estava viajando como embaixador em uma missão especial e é ex-chefe de Estado, portanto, goza de foro parlamentar, imunidade diplomática e imunidade de Estado. Fernández já argumentava que, em razão do acúmulo de pedidos de extradição, a única opção que considerava viável para salvar Pinochet era apelar por razões humanitárias. Ele também sintetizou três argumentos apresentados a ele por seus interlocutores britânicos para favorecer o retorno: os tribunais chilenos poderiam solicitar sua extradição, pois já havia processos abertos contra ele, seria positivo se fizesse uma declaração expressando sua intenção de se retirar da vida pública e que enviasse uma mensagem às vítimas da ditadura. Nesse mesmo dia, a Alta Corte de Justiça de Londres reconheceu que Pinochet tinha o direito a imunidade, como ex-chefe de Estado, pelos delitos e crimes de que Garzón o acusava e concordou com sua liberdade condicional, com vigilância permanente. Em nome do juiz de instrução espanhol, o Ministério Público anunciou que apelaria da decisão perante a Câmara dos Lordes, que teria a última palavra.

(…) Em 25 de novembro de 1998, em votação apertada, com três votos a favor e dois contra, os lordes revogaram a imunidade concedida a Pinochet em 28 de outubro, uma vez que a legislação britânica não dava amparo aos crimes contra a humanidade dos quais o juiz Garzón o acusava. "Quando Hitler ordenou a solução final, sua ação poderia ser considerado um ato oficial derivado do exercício de suas funções como chefe de Estado", afirmou lorde Johan Steyn. Pinochet foi formalmente notificado da sentença no hospital por uma intérprete oficial, que teve que ler duas vezes o ditame que abria o caminho de sua extradição para a Espanha. Então, o general colocou as mãos no rosto e começou a chorar. Naquele dia, completava 83 anos e já haviam preparado suas malas para retornar ao Chile em um dos dois aviões que a Força Aérea havia enviado.

Mario Amorós é historiador e jornalista. Este texto é um extrato de ‘Pinochet. Biografia Militar e Política', publicada por Ediciones B neste 12 de setembro.

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