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‘Vozes da Floresta’, o documentário que revela as muitas crises do Brasil

Filme de Betse de Paula conta a história de mulheres indígenas e quilombolas em luta pelo direito à terra e proteção do meio ambiente

Quebradeiras de coco no documentário 'Vozes da Amazônia'.
Quebradeiras de coco no documentário 'Vozes da Amazônia'.Divulgação

Elas se definem como os povos das águas, os ribeirinhos, os quilombolas, os da periferia, da cultura e das tradições. São mulheres que enfrentam balas e arames para defender seu direito à terra e de proteger a natureza que as cerca. Em Vozes da Floresta, documentário de Betse de Paula que estreou na semana que passou no 29º Cine Ceará (Festival Ibero-americano de Cinema), quilombolas, quebradeiras de coco e indígenas famosas —como a política Sônia Guajajara (PSOL)— e anônimas são protagonistas de narrativas que contam todas as crises do Brasil atual. A principal delas, a ambiental.

O longa-metragem nasceu da série Guardiãs da Floresta, exibida no Canal Brasil, que, em dez capítulos, conta a história dessas mulheres. Depois de um ano e meio de gravação, a diretora resolveu montar o documentário. Tínhamos 400 horas de material bruto. Foi um mês inteiro só para assistir tudo e mais seis ou oito meses de montagem”, conta Betse de Paula em entrevista ao EL PAÍS. “Infelizmente, o filme ficou bem atual. Quer dizer, ficou urgente”, acrescenta, referindo-se à onda de incêndios que devasta a Amazônia.

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"É uma pobreza de consciência, para não dizer que é um analfabeto da terra", diz Nice Machado, de 55 anos, líder da Associação das Comunidades dos Negros Quilombolas e Rurais do Maranhão, sobre as autoridades que "são coniventes" com a tragédia ambiental na floresta e ao Governo federal que, em sua opinião, não sabe "nem tem interesse" de resolver o problema. Nice apresentou Vozes da Floresta em Fortaleza, ao lado da diretora e de Dorinete Morais, de 45 anos, líder da Associação dos Afetados pela Base de Alcântara, no Maranhão; e de Rosa Costa, de 57 anos, do Movimento das Quebradeiras de Coco de Babaçu do Maranhão.

Para elas, a política ambiental está intrinsecamente relacionada à própria sobrevivência. "A luta do povo negro no Brasil tem 486 anos. E o primeiro passo para nossa liberdade real é o direito à terra", afirma Nice. “A grilagem nos expulsou de nossas terras. Grande parte do nosso povo foi morar na beira das estradas”, lamenta Rosa. A quebradeira de coco também se queixa de que o conceito de floresta, na concepção popular, restrinja-se à Amazônia. "Existem outros tipos, há uma biodiversidade imensa. E, se a gente for dono dos nossos territórios, a gente cuida. A gente não deixa o fogo passar" afirma.

O documentário mostra tanto o cotidiano delas em suas associações —seja catando e quebrando coco de babaçu, palestrando sobre política para mulheres ou viajando à Brasília para protestar no Congresso— quanto as ameaças às quais estão sujeitas e cenas explícitas de violência, como o assassinato de um indígena por grileiros em Rondônia.

"Em Alcântara, não sofremos essa ameaça tão direta, porque não enfrentamos latifundiários, mas, sim, a União. É um problema que temos desde os anos 1980 e, agora, com o acordo assinado no dia 18 de março, o Governo concede mais da metade do nosso território à base militar. E nós nem sequer fomos ouvidos", conta Dorinete. Ela se refere ao acordo entre Brasil e Estados Unidos para que empresas norte-americanas possam utilizar a base espacial militar de Alcântara, no Maranhão, para lançar satélites comerciais.

Em Alcântara, diz Dorinete, a floresta é o manguezal, são as áreas de roça, os animais. "É todo o conjunto de coisas que nos permite viver e viver com qualidade. Se a gente não toma cuidado, a gente vive como quem está na cidade, passando calor, comendo veneno". 

Desilusão

Vozes da Floresta argumenta que todos os Governos, à direita e à esquerda do espectro político, falharam nas questões de política ambiental e proteção às comunidades originárias. Na conversa com o EL PAÍS, as líderes comunitários falaram da desilusão com os governos progressistas do PT (Partido dos Trabalhadores). Rosenilde critica, por exemplo, a falta de políticas efetivas de demarcação dos territórios quilombolas e indígenas durante os Governos de Lula e Dilma Rousseff.

“A gente teve uma ilusão de que as coisas seriam melhores. Pessoas saíram do movimento para integrar esses governos e esse foi nosso erro, porque aí deixamos de bater neles, deixamos de pressionar. E até hoje é assim. Embora o governador Flavio Dino seja oposição a Bolsonaro, nessa questão de Alcântara é a mesma coisa", diz Dorinete. "Realmente falhamos ao deixar a luta esfriar durante os Governos do PT. Mas a gente não vai parar de lutar agora, só porque tem filha de quebradeira de coco na universidade", concorda Nice.

As mulheres que defendem a Amazônia e as outras florestas do Brasil não se deixam intimidar. A  diretora Betse de Paula confessa que teve medo de que o documentário aumentasse as ameaças e pressões sobre essas líderes e suas famílias. "Por outro lado, penso que dar visibilidade também é uma forma de proteger, porque, se acontecer alguma coisa com elas, haverá represália. Isso me deu um certo conforto", matiza. Já as mulheres não titubeiam. Elas não têm medo de nada, não.

A reportagem viajou a convite do Cine Ceará.

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