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‘Maria do Caritó’, um sopro de humor lírico no cinema nacional

Homenageada no 29º Cine Ceará, a atriz Lília Cabral apresenta ao público o primeiro longa-metragem que produz. Trata-se da história de uma virgem milagreira cheia de desejos

Cena de 'Maria do Caritó'.
Cena de 'Maria do Caritó'.Divulgação

No Nordeste brasileiro, caritó é uma prateleira ou nicho rústico nas paredes das casas. A palavra que dá nome ao lugar em que se guardam coisas esquecidas pelo tempo, empoeiradas, também é um sinônimo machista para moça solteirona, aquela cujo "arroz já passou". Maria do Caritó, protagonista da peça homônima de Newton Moreno, é a personificação dessa ideia. Depois de cinco anos nos palcos, a atriz Lília Cabral leva a história da virgem milagreira e cheia de desejos ao cinema, a partir do dia 31 de outubro. Conhecida principalmente pelo seu trabalho em novelas, a atriz foi homenageada no 29º Cine Ceará (Festival Ibero-americano de Cinema), que acontece em Fortaleza até 6 de setembro, onde apresentou o longa.

Maria do Caritó foi prometida no nascimento pelo pai ao desconhecido São Djalminha, mas vive apegada a Santo Antônio fazendo simpatias para encontrar um amor. Enquanto isso, os poderes político e religioso da cidade querem enclausurá-la para canonização. A sorte dela muda com a chegada de um circo e de seu vistoso Galã Anatoli (é assim, com galã em maiúsculas, que conhecemos o personagem interpretado por Gustavo Vaz).

Foi da própria Lília Cabral a ideia de levar a peça às telonas, tanto que a atriz é coprodutora do longa. A direção ficou a cargo de João Paulo Jabour, que estudou documentário na Escuela de Cine y Televisión de Cuba e que estreou na ficção com a novela Salve Jorge, da Globo. Nenhum dos dois define Maria do Caritó como comédia, e têm razão. O que o espectador encontra é um humor com poesia, que tem ingenuidade e emociona. Um sopro de leveza em meio à leva recente de filmes duros e mais politizados, como Bacurau.

"Eu não gosto da comédia gratuita, fácil. Eu gosto de história", diz Lília em entrevista ao EL PAÍS. "Um dos momentos de destaque dessa mistura de riso e lirismo é a procissão em que Caritó é carregada em uma cadeira sobre a multidão que canta, apaixonada e devotadamente, para que o Senhor conserve "pura e intocada" sua "teia de aranha consagrada" no meio das pernas. Ou quando a protagonista, tentando ganhar ao mesmo tempo uma vaga no circo e o coração do Galã apresenta no picadeiro seu "pot-pourri do amor", cantando e dançando hits que vão de Roberto Carlos a Luan Santana, passando por Claudinho e Bochecha, Marília Mendonça e Paradinha, de Anitta. A composição do "pupurriti" (como diz a personagem) foi feita pela própria Lília: "Eu que inventei. No teatro, era uma música só, mas quis colocar mais. Naquela época, em 2010, ninguém sabia quem era Luan Santana, mas minha filha já escutava", conta, entre risos.

Na estreia no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza, o público, que lotou a sessão, se empolgou com a cena a ponto de bater palmas na melodia da trilha sonora e cantar letra por letra junto com Caritó. E a emoção da plateia comoveu a atriz. "As pessoas estão muito acostumadas em me ver na televisão. E aqui em Fortaleza a necessidade do público de me tocar, de falar sobre aquilo que eles tinham acabado de assistir é muito linda. A gente, que fica no eixo Rio-São Paulo, não tem dimensão do sentimento real das pessoas. Nunca tinha visto o que vi aqui", diz, entre lágrimas.

Lília acredita que o filme "vem muito bem neste momento difícil", em que o cinema está cada vez mais em evidência não só pela qualidade das produções nacionais, mas também por estar na mira da tesoura do Governo. Ela lembra, especificamente, da situação da Ancine (Agência Nacional do Cinema), sob ameaça de extinção ou aplicação de "filtro" para financiamento das produções. "Nós montamos Maria do Caritó com nosso dinheirinho. Recebemos incentivo, mas o básico", conta. "Temos que pensar que somos sobreviventes. Somos sobreviventes, e tenho orgulho disso".

Ela conta que filmes como O Alto da Compadecida (2000) Lisbela e o Prisioneiro (2003), ambos de Guel Arraes, serviram de inspiração para um projeto que mostrasse "o Brasil como uma coisa só". "O Nordeste é muito rico, tenho muita vontade de fazer mais trabalhos assim. Me veio a vontade de levar a peça ao cinema quando começamos a sair do eixo Rio-São Paulo e percebemos que ela tinha a mesma recepção em todos os lugares. A primeira cidade a qual fomos foi Porto Alegre e tínhamos o receio de que o povo do Sul não entendesse aquela história tão regional. Não foi assim, porque essa história é o Brasil", afirma. E essa é Maria do Caritó, uma palhaça triste que, com uma graça doída, chega a todo mundo.    

A reportagem viajou a convite do Festival Cine Ceará.     

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