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Tribuna
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Quando o G7 salvou a Amazônia

Rejeitada por Bolsonaro como “esmola”, ajuda do grupo dos ricos no passado lançou as bases das políticas atuais para a floresta, que estão sendo desmontadas

Trecho de floresta queimada em Rondônia, no último domingo.
Trecho de floresta queimada em Rondônia, no último domingo.EFE
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O G7, grupo dos países mais ricos do mundo, ofereceu dinheiro para o Brasil num momento de crise causada por desmatamento e queimadas fora de controle na Amazônia. A pressão internacional sobre o país era intensa, com líderes estrangeiros falando em internacionalizar a floresta. De forma surpreendente, o presidente do Brasil — um outsider longilíneo com inclinações autoritárias e que muita gente não hesitaria em chamar de maluco — aceitou a oferta do clube dos ricos. Não impôs condições e não acusou ninguém de querer comprar a região. Essa história aconteceu de verdade. O ano era 1992. O nome do presidente era Fernando Collor de Mello.

O movimento do G7 foi feito no contexto da conferência Rio-92, na qual nasceram as convenções de Clima e Biodiversidade da ONU. Ele daria origem ao Programa Piloto de Proteção às Florestas Tropicais do Brasil, o PPG-7, que começou a operar em 1994. Até hoje considerado o maior caso de sucesso de cooperação internacional na área ambiental, o PPG-7 durou 15 anos e investiu 463 milhões de dólares, que ajudaram a criar 100 milhões de hectares de terras indígenas em unidades de conservação, e desenvolver tecnologias que provaram que manter floresta em pé não é incompatível com melhorar a vida das pessoas que moram nela. De um jeito muito real, o programa criou as condições para o Brasil reduzir a taxa de desmatamento entre 2005 e 2012.

Foi ali que surgiu parte da governança ambiental que ora é desmantelada por Jair Bolsonaro e seu antiministro do Meio Ambiente. Dois instrumentos particularmente importantes nasceram dentro do programa-piloto. Um deles foi a ideia de criar vastas extensões de áreas protegidas como barreiras à grilagem e ao desmatamento. Isso incluía o zoneamento ecológico-econômico dos Estados da Amazônia, a fim de identificar as áreas com maior aptidão agropecuária e as áreas com maior potencial de conservação.

O outro instrumento foi um sistema de licenciamento de propriedades rurais que consistia em mapear por satélite as áreas de vegetação nativa em cada fazenda. Batizado SLAPR, o sistema foi adotado com sucesso em Mato Grosso no fim do Governo FHC e expandido para outros Estados Amazônia no Governo Lula. Hoje ele vigora no país inteiro sob o nome de Cadastro Ambiental Rural, ou CAR. Ruralistas que apoiaram a decisão de Bolsonaro de rejeitar a “esmola” de 20 milhões de dólares oferecida pelo G7 na última segunda-feira se dizem fãs do CAR e do zoneamento.

O programa também testou os incentivos econômicos à manutenção da floresta, algo que o Brasil nunca conseguiu fazer funcionar na escala necessária. Manejo sustentável de madeira, cadeias produtivas de óleos e essências, açaí e castanha — tudo isso foi explorado. Colonos da Transamazônica, no Pará, aprenderam que um pé de copaíba em suas terras vale mais pelo seu óleo do que pela sua madeira.

Como o Governo sabia que não daria conta de executar todos os projetos iniciados com a doação do G7, o programa-piloto produziu mais uma inovação: entregou-se essa tarefa a organizações da sociedade civil. Os néscios que criticam a suposta profusão de ONGs na Amazônia fariam bem em entender que essas organizações foram chamadas pelo Estado para suprir a carência de Estado, em parceria com o Estado. O PPG-7 ajudou a criar uma capacidade de atuação de ONGs na Amazônia que se mostraria importante depois.

Foi por causa dessa capacidade que a Noruega entregou ao Brasil 1 bilhão de dólares de seu fundo soberano em 2007 com a condição de que parte dos projetos fossem executados por ONGs e com a tranquilidade de que o recurso seria aplicado naquilo a que se destinava. Ao tentar, de forma desonesta e truculenta, tirar as ONGs do Fundo Amazônia, o antiministro Ricardo Salles ignorou um histórico de mais de duas décadas de parceria bem-sucedida. É evidente que os doadores não topariam a patranha — os alemães, que doam para o fundo, foram os maiores contribuintes do PPG-7. Eles cooperam com ONGs no Brasil desde que Salles era um estudante do colegial e nunca tiveram problemas com isso.

O principal ganho do PPG-7, porém, foi imaterial: o programa ajudou a silenciar a paranoia soberanista que cercava qualquer ação estrangeira na Amazônia. Mostrou que cooperação em meio ambiente não é um jogo de soma zero e que, não, soldados de olhos azuis não vão desembarcar na região Norte e decretá-la zona internacional.

Evidentemente não se tratava de um surto de bondade do G7: era um dinheiro que os países ricos eram obrigados a doar de qualquer maneira como ajuda externa ao desenvolvimento — aliás, nunca cumpriram o compromisso firmado em 1992 de aumentar os repasses de 0,36% para 0,7% do PIB. E que encontrou destinação adequada na proteção de um ativo que preocupava a opinião pública nos países doadores. O Planalto, por sua vez, entendeu que o sucesso do programa ajudaria a calar a boca dos críticos que diziam que os brasileiros eram incapazes de cuidar da própria floresta.

Isso tudo, claro, era como raciocinavam os civis no governo.

Os militares nunca engoliram essa história de cooperação internacional e nunca deixaram de alimentar a psicose da invasão estrangeira facilitada pelas ONGs, pelos índios e pelos padres. Sua volta ao poder em 2018 libertou todos os demônios enjaulados desde a Rio-92. E desta vez não vieram sozinhos, mas apoiados num casamento de conveniência com os setores mineiro e agropecuário que perderam o acesso livre às terras baratas na Amazônia.

Os discursos de ignorância calculada do general Heleno (que conhece a Amazônia muito bem) e o tuíte do general Villas-Boas que nomeia uma trupe de malucos como referências de “equilíbrio” na área ambiental mostra que essa gente não está brincando: querem retomar o controle dos destinos da região e continuar de onde seus antecessores pararam em 1985. Isso inclui apertar o cerco contra os indígenas e seus defensores, contra as ONGs e contra a Igreja Católica — e dar uma bicuda na cooperação internacional.

Dificilmente foi da própria cabeça que Bolsonaro tirou a ideia de mandar Angela Merkel pegar o repasse alemão do Fundo Amazônia e “reflorestar a Alemanha”. Em nenhuma outra situação um presidente com uma emergência ambiental a enfrentar deixaria 200 milhões dólares (o saldo do Fundo Amazônia, dez vezes mais que a “esmola” do G7) bloqueados por birrinha de seu ministro do Meio Ambiente, quando uma canetada poderia resolver a questão. O discurso surreal de Bolsonaro contra os índios nesta semana, o powerpoint vazado que resgata elementos do programa Calha Norte e o fato de estar circulando na Secretaria de Assuntos Estratégicos o clássico conspiratório militar A farsa ianomâmi, de Carlos Alberto Menna Barreto (1995), completam os sinais. Vem nacionalismo bruto por aí.

O que a turma verde-oliva e a ala psiquiátrica do Governo precisam entender é que o mundo, o Brasil e a Amazônia mudaram muito desde 1992. Há tecnologia de dados, comunicações e liberdade de imprensa. Há compromissos internacionais ratificados pelo Brasil contra a crise climática que demandam proteção da floresta. E, como o setor de couro acaba de descobrir, há um poder de pressão muito maior dos mercados globais sobre a economia brasileira. O caso do PPG-7 mostra que o desastre da política ambiental do país não se terá devido à falta de bons exemplos no passado.

Claudio Angelo é jornalista, coordenador de Comunicação do Observatório do Clima e autor de A espiral da morte: como a humanidade alterou a máquina do clima (Companhia das Letras, 2016)

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