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O limbo legal da Lava Jato que confiou cegamente no Telegram

Mensagens entre procuradores da Lava Jato, obtidas pelo ‘The Intercept’, mostram fé cega na segurança do aplicativo e revelam doses de “abuso de autoridade pública”, diz jurista

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As mensagens entre procuradores e membros da força-tarefa da Lava Jato, publicadas desde o início de junho pelo The Intercept e outros veículos, incluindo o EL PAÍS, têm colocado em xeque a imparcialidade da maior operação contra a corrupção do Brasil. Entre emojis e documentos sigilosos, as conversas reveladas viraram de cabeça para baixo a atuação da procuradoria em Curitiba trazendo à tona a informalidade na troca de informações sensíveis para a investigação. A Vazajato mostra, dentre outras coisas, que foi pelo Telegram, por exemplo, que os procuradores enviaram uns aos outros a proposta de delação do ex-ministro Antonio Palocci, documento que deve estar sob sigilo e protegido pela lei da colaboração premiada.

Se por um lado aplicativos de conversas instantâneas são práticos e eficientes, por outro, o uso dessas ferramentas privadas por autoridades pode por em risco não só à segurança da informação como também das próprias instituições. Longe de ser uma mera formalidade, a utilização de e-mails oficiais colocam as informações trocadas em ambientes um pouco mais seguros e seus registros podem ser mais bem controlados. “O e-mail corporativo pode deixar registros que podem ser acessados por técnicos, por exemplo”, afirma Bernardo Wahl, especialista em segurança internacional. No entanto, para o coordenador da força-tarefa Deltan Dallagnol, o Telegram era "mais seguro que e-mail", segundo ele mesmo disse em um chat privado a um assessor de imprensa em março de 2016.

Carlos Ari Sundfeld, especialista em direito público, opina que a escolha por canais extraoficiais para a troca de informações sigilosas, somada a outras condutas de alguns procuradores é parte de uma cultura que envolve informalidade e até abuso da autoridade. "Os procuradores cometem infrações imaginando que suas instituições vão protegê-los, fica uma certa sensação de impunidade", diz. "Fica evidente também o abuso no exercício da autoridade pública". Para ele, se a Lei de Abuso de Autoridade, que passou no Congresso e depende de sanção presidencial, já valesse desde o início da Lava Jato, algumas das atitudes inadequadas de juízes ou procuradores flagradas em conversas do Telegram poderiam ter sido enquadradas.

Um policial norueguês Randi Bang, que interagiu com os procuradores, mostrou surpresa ao ser incluído em um grupo de Telegram criado pelos procuradores brasileiros em julho de 2015. “Eu devo admitir que essa é uma nova forma de comunicação para nós. Qual tipo de informação é possível compartilhar por aqui com segurança?”, questionou Bang no grupo Norway-Brazil car wash connection. Mas a confiança na troca de mensagens pelo chat naquele momento ainda era inabalável. “Este é um canal muito seguro, eu diria. Aqui no Brasil, nós compartilhamos entre nós algumas informações sensíveis, tudo baseado na confiança mútua”, responde o procurador Carlos Fernando Lima. “Esse app usa tecnologia criptografada para transmitir os dados. Então, é muito seguro”, completou, horas mais tarde, o procurador Orlando Martello. A Noruega entrou no radar da Lava Jato em 2015, quando passou a investigar propinas em contratos com a Petrobras por meio da empresa Sevan Drilling, especializada em exploração de petróleo em alto-mar.

Naquele mesmo ano, o jornal The New York Times revelava que Hillary Clinton havia instalado um servidor particular em sua casa, em Nova York, por onde enviou e recebeu todos os emails —pessoais e profissionais— enquanto era secretária de Estado, entre 2009 e 2013. Mas nem mesmo aquela tempestade causada nos Estados Unidos, cujo pivô era justamente a segurança da informação, abalou a confiança nos chats da procuradoria aqui no Brasil. Ainda que tratassem de assuntos que envolviam bilhões de reais, que afetavam o destino de muitas das pessoas mais poderosas da República do Brasil e de outros países, a fé nas qualidades do aplicativo era surpreendente, como afirma Sundfeld. "Me surpreende, diante de uma situação tão relevante, que os procuradores tenham trocado mensagens em grupos de aplicativos", diz. "Parece que estão todos no pré-primário da segurança da comunicação".

"Eu não costumo apagar grupos inativos"

Aparentemente, os procedimentos adotados pelos procuradores com a segurança das mensagens se limitava a criar novos grupos de conversa de quando em quando, apagando os antigos, e alertar para que os computadores não ficassem abertos no ambiente de trabalho quando as mensagens eram consultadas ali. “Pessoal, tenho visto que muitos costumam deixar suas mesas sem bloquear computador. Aí as mensagens do Telegram ficam pipocando nas telas para qualquer pessoa ver”, disse o procurador Paulo Galvão, no grupo FT MPF Curitiba 2, em maio de 2015. "Não escreva nada que outra pessoa não pode ler", brinca o procurador Antônio Carlos Welter, no mesmo chat.

Mais tarde, em agosto do ano seguinte, Galvão alertou para que os demais apagassem as mensagens do grupo antigo, após a criação do novo. “Caros, favor todos saírem e depois apagarem o grupo FT 3. WELTER ainda falta sair do FT 2”, escreveu ele, no grupo Filhos do Januario 1, sobre os chats 2 e 3 da força-tarefa.

Ao contrário do que aconselhava o colega, Dallagnol parecia permanecer em alguns grupos mesmo depois que eles já estavam desativados. “Fiquem à vontade para sair do grupo (eu não costumo apagar grupos inativos, então fico por aqui rs)”, afirmou o procurador em uma mensagem em julho de 2016, no chat 10 Medidas - Congresso, Brasília. Naquele momento, o procurador agradecia o empenho dos demais no projeto das 10 medidas contra a corrupção. “Bom não apagar para guardar a memória das batalhas! No seu livro tudo terá de ser contado 🤗”, disse o procurador Vladimir Aras. Dallagnol respondeu com emojis: “😂😂😂”.

Para Sundfeld, ao mesmo tempo em que as mensagens podem revelar a boa intenção da procuradoria, também deixam evidente uma dose de “arrogância”. "Você percebe que os procuradores em Curitiba estão empenhados, estão entusiasmados com as investigações, mas percebe também um certo grau de arrogância e imprudência e até de limite do exercício de autoridade que impressiona", diz. "Isso tem resultados muito nocivos para a instituição".

Mônica Sapucaia, doutora em direito político e econômico, especialista em administração pública, lembra que caso da Vazajato virou um case internacional ao expor o limbo jurídico para abordar o uso de ferramentas tecnológicas em situações do gênero. “A inclusão da tecnologia na Justiça ainda não está resolvida. Com o tempo ela foi entrando na estrutura da gestão e hoje não há determinação única a respeito do seu uso”, diz Sapucaia.

Sistema próprio de comunicação

De acordo com a Procuradoria-Geral da República (PGR), desde outubro do ano passado os servidores podem utilizar o eSpace, ferramenta para a troca de mensagens "protegida pelo conjunto de controle de segurança que resguarda os demais sistemas e serviços de tecnologia do MPF", como informou a PGR, por meio de nota. Mas, embora disponível há quase um ano, foi somente no início de julho deste ano que a procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, determinou que os procuradores usassem o eSpace, ao invés do WhatsApp ou do Telegram. A determinação ocorreu quase um mês depois que as primeiras mensagens começaram a ser publicadas pelo The Intercept Brasil.

A PGR afirmou também que vem tomando medidas de proteção ao menos desde o início de maio, "quando foram identificadas tentativas de ataques" a celulares de autoridades. Dentre as medidas, estão a elaboração de informes de segurança e a determinação de investigações aos ataques cibernéticos. Leia íntegra da resposta da PGR aqui.

Logo após a publicação da primeira reportagem, o Telegram compartilhou no Twitter uma nota afirmando que "não foi hackeado". Em português, também escreveu na rede social algumas "dicas básicas de segurança de contas", que incluem um sistema duplo de verificação que vetaria, em tese, o golpe que usa a caixa de mensagens do celular do usuário. Para Bernardo Wahl, não basta um aplicativo ser seguro, se, por trás dele, há um humano. “Não existe 100% de segurança. O elo humano acaba sendo o mais fraco”.

Questionada sobre a preferência do Telegram ao invés do eSpace, a força-tarefa de Curitiba afirmou, por meio de nota, que “a recomendação pelo uso do eSpace só foi feita após os ataques de hackers”. “Até então, o Telegram era tido como um dos mais seguros aplicativos de mensagens e foi utilizado por centenas de colegas em todo Brasil, inclusive no âmbito da alta administração do Ministério Público Federal”, segue a nota. “Empregar ferramentas que permitem que decisões sejam debatidas e discutidas por diversas pessoas é bastante recomendável. O que é errado é a invasão criminosa de aplicativos de mensagens utilizados por autoridades públicas, e não sua utilização legítima como meio de comunicação”, finalizam.

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