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Maior estudo da história não encontra relação determinante entre genes e comportamento sexual

Análise de 500.000 pessoas sustenta que é impossível predizer por sua informação genética se uma pessoa será homossexual ou heterossexual

Manuel Ansede
Manifestação do Orgulho em Montreal (Canadá), em 18 de agosto.
Manifestação do Orgulho em Montreal (Canadá), em 18 de agosto.David Himbert/EUROPA PRESS
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“Eu sou gay, e meu irmão, não”, escuta frequentemente o psicólogo Juan Ramón Ordoñana em suas entrevistas com os membros do único registro de gêmeos da Espanha, uma base de dados de 3.500 adultos da região de Murcia. Os irmãos gêmeos são um laboratório vivo para tentar compreender a influência da genética no comportamento humano. A existência de pessoas que compartilham 100% de seus genes e apresentam diferentes comportamentos sexuais indica que a chave deve ser buscada em outros fatores. Mas Ordoñana também ouve a frase contrária: “Somos irmãos gêmeos e os dois somos homossexuais”. É um dos mistérios mais fascinantes da natureza humana.

Uma equipe internacional de cientistas apresenta nesta quinta-feira o maior estudo já feito sobre a influência da genética no comportamento sexual. Foram estudadas quase 500.000 pessoas, 100 vezes mais que no maior trabalho anterior. “Nossa pesquisa mostra que não há um só gene gay, e sim muitíssimos genes que influenciam a probabilidade de que uma pessoa tenha parceiros do mesmo sexo”, diz o geneticista Brendan Zietsch, diretor do Centro de Psicologia e Evolução da Universidade de Queensland, na Austrália.

"Não há um só gene gay, e sim muitíssimos genes que influenciam", diz o geneticista Brendan Zietsch

Os pesquisadores empregaram duas bases de dados: 410.000 pessoas de 40 a 70 anos do Biobank do Reino Unido, e outras 68.500 dos arquivos da empresa norte-americana 23andMe, com uma média de idade de 51 anos. Sua primeira análise mostrou que os parentes próximos, pelo menos primos, tinham mais chances de apresentarem comportamentos sexuais similares. Mediante um complexo procedimento estatístico, os autores calcularam que um terço das diferenças observadas no comportamento sexual destes familiares se explica por fatores genéticos herdados.

A segunda análise foi além. O manual de funcionamento de uma pessoa está escrito em três bilhões de letras no núcleo de cada célula. A equipe de Zietsch procurou variantes genéticas mínimas — uma só letra — correlacionadas com comportamentos homossexuais. Segundo seus cálculos, o efeito somado de todas essas pequenas variações na sequência de DNA poderia explicar entre 8% e 25% das diferenças detectadas no comportamento sexual. A disparidade destas cifras com os 33% da primeira análise poderia ocorrer porque as tecnologias utilizadas não são suficientemente sofisticadas para localizar todas as variantes genéticas.

As demais diferenças decorreriam dos chamados fatores ambientais. “Neste caso, a palavra ambiental só significa que não são influências genéticas. Não precisa ser nada relacionado a educação ou cultura. Poderiam ser efeitos biológicos não genéticos ou o ambiente pré-natal no útero. Nosso estudo não lança luz sobre estas influências”, salienta Zietsch, que assina a pesquisa com geneticistas, psicólogos, sociólogos e estatísticos de centros como a Universidade de Cambridge e o Instituto Broad do Instituto Tecnológico de Massachusetts e Universidade Harvard.

As variantes genéticas poderiam explicar entre 8% e 25% das diferenças detectadas no comportamento sexual

Os autores do estudo, que sai nesta quinta-feira na revista Science, só identificaram cinco variantes genéticas correlacionadas com o comportamento homossexual, mas com uma influência mínima. Somados, seus efeitos explicariam menos de 1%. “É basicamente impossível predizer a atividade sexual ou a orientação de uma pessoa por sua genética”, afirma o estatístico Andrea Ganna, do Instituto Broad.

“Não existe um gene da homossexualidade nem da heterossexualidade nem da inteligência. São comportamentos muito complexos, provavelmente vinculados a centenas ou milhares de variantes genéticas distribuídas por todo o genoma”, diz Ordoñana, um pesquisador da Universidade de Murcia que não participou desse estudo. Os efeitos combinados dessas milhares de variantes genéticas hoje desconhecidas somariam essas influências detectadas de 33% ou de 8%-25%, dependendo do tipo de análise.

Das cinco variantes identificadas, duas são compartilhadas por homens e mulheres, outras duas são masculinas, e uma é feminina. Seu efeito individual é tão pequeno que só pode ser detectado em pesquisas com centenas de milhares de indivíduos. Por exemplo, 4% das pessoas com uma variante na posição rs34730029 do genoma apresentam um comportamento homossexual, frente aos 3,6% que não têm essa variante. Para identificar mais diferenças relevantes no DNA é preciso estudar milhões de pessoas.

Os pesquisadores encontraram “uma correlação genética” entre o comportamento homossexual e a depressão

Os pesquisadores também encontraram “uma correlação genética” entre o comportamento homossexual e alguns traços da personalidade, como o sentimento de solidão, a abertura a novas experiências e os hábitos de risco, como o consumo de tabaco e maconha. Também observaram uma correlação genética com alguns problemas de saúde mental. Em uma escala do 0 a 1, em que o zero significa que as influências genéticas não se sobrepõem em dois traços diferentes, a depressão chega a 0,44 em mulheres e a 0,33 em homens, enquanto que a esquizofrenia alcança 0,17 em mulheres e 0,13 em homens.

“É importante salientar que a causalidade não está clara. Uma possibilidade é que o estigma associado ao comportamento sexual com pessoas do mesmo sexo provoque ou exacerbe problemas de saúde mental”, salienta Zietsch. “Mas não temos suficientes dados para desenredar as diferentes opções”, admite.

Os autores tentaram entender os mecanismos biológicos das cinco variantes genéticas relacionadas ao comportamento homossexual. Uma delas está localizada em um trecho do DNA que abriga genes relacionados ao sentido do olfato, vinculado à atração sexual. Outra variante está associada à calvície masculina e a um gene relevante na formação das gônadas, o que “respalda a ideia de que a regulação dos hormônios sexuais poderia estar implicada no desenvolvimento de um comportamento sexual com pessoas do mesmo sexo”, segundo os pesquisadores. “As variantes genéticas heterossexuais são a outra cara das não heterossexuais: nas mesmas localizações, mas simplesmente com outras letras do código”, resume Zietsch.

A regulação dos hormônios sexuais poderia estar implicada no desenvolvimento do comportamento homossexual, segundo os pesquisadores

O pesquisador Simon Heath, entretanto, acredita que “não há uma base científica potente” que vincule as variantes genéticas detectadas aos genes relacionados com o olfato e a calvície. “Baseiam-se em olhar genes próximos. E sempre se pode construir uma boa história esteja onde estiver a variante genética”, diz Heath, do Centro Nacional de Análise Genômica, parte do Centro de Regulação Genômica de Barcelona.

No entender desse especialista, o novo estudo está “bem executado”, mas apresenta algumas limitações, como colocar uma pessoa na etiqueta de comportamento homossexual simplesmente por ter tido uma só destas experiências em sua vida. “É uma definição muito simples que esconde grande parte da complexidade da orientação sexual”, opina.

Além disso, aponta Heath, há outros elementos a levar em conta. Os 410.000 participantes do Reino Unido preencheram um questionário geral em que 4% dos homens e 2,8% das mulheres afirmaram ter tido pelo menos uma relação sexual com uma pessoa do mesmo sexo. Nos EUA, essa pergunta era voluntária, e os que responderam de maneira positiva chegam a 19%, “o que pode se dever a que pessoas com estilos de vida não convencionais estariam mais dispostas a responder”, cogita Heath. “Essa diferença nos conjuntos de dados dificulta a interpretação dos resultados”, conclui.

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