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Venezuela, sob o reino do terror policial

Repressão aumenta nos bairros pobres pelas mãos das Forças de Ações Especiais, uma unidade da Polícia Nacional criada por Maduro que já acumula centenas de denúncias por supostas execuções extrajudiciais

Membros da Força de Ações Especiais (FAES) da Guarda Nacional Bolivariana, durante um protesto em janeiro passado em Caracas.
Membros da Força de Ações Especiais (FAES) da Guarda Nacional Bolivariana, durante um protesto em janeiro passado em Caracas.YURI CORTEZ (AFP)
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O terror se espalha pelos bairros pobres da Venezuela. As Forças de Ações Especiais (FAES) da Polícia Nacional estão na mira dos observadores por tomarem a justiça nas próprias mãos: acumulam centenas de denúncias por supostas execuções extrajudiciais e uma ampla lista de abusos. Ativistas de direitos humanos alertam que qualquer um, seja delinquente ou inocente, pode ser justiçado sem mediação dos tribunais, por mero capricho de alguns oficiais.

Carmen Arroyo, de 52 anos, diz que o objetivo desse esquadrão é manter o controle social. Seu único filho, o barbeiro Cristián Charris, foi assassinado por policiais no bairro de Petare, na zona leste de Caracas, em setembro de 2018. “Disseram que ele tinha roubado outro oficial dias antes, mas ele estava trabalhando na barbearia quando isso aconteceu. Mais de 600 pessoas assinaram uma carta dizendo que meu filho era honesto”, argumenta. Poucos reconheceram os oficiais, que usavam roupas pretas, cobriam os rostos com capuzes, portavam fuzis e se deslocavam em veículos sem placas.

A chilena Michelle Bachelet, alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, escutou essa história e outras parecidas quando esteve na Venezuela, em junho passado. “Falei com a senhora Bachelet. Ela se tinha reunido com o procurador-geral, Tarek William Saab, que dizia não ter denúncias de execuções extrajudiciais, mas nós lhe mostramos outra realidade”, recorda Miriam Gamarra, mãe de um jovem assassinado por policiais no bairro caraquenho de Las Adjuntas.

Seu filho foi detido por participar dos protestos antigovernamentais de 2017. Depois de solto, esse rapaz de 21 anos não conseguiu arrumar emprego. Ninguém queria contratá-lo por seus antecedentes penais. Em 13 de maio, agentes das FAES entraram em sua casa e perguntaram seu nome; ele respondeu: “Luis Alfredo Ariza Gamarra”. Foi fotografado na sala da residência, e depois levado para fora. Na rua, as testemunhas escutaram um tiro. “Puseram uma arma na mão dele, um boné, e disseram que se tratou de um confronto”, acrescenta sua mãe.

De acordo com o Ministério Público, 6.856 pessoas foram mortas por “resistência à autoridade” entre janeiro de 2018 e maio de 2019. A ONU considera esse número “excepcionalmente alto” e conclui que os corpos de segurança são os supostos responsáveis por numerosas execuções extrajudiciais. Em sua análise, a entidade sugeriu a dissolução das FAES.

A recomendação foi desprezada por Nicolás Maduro. Em julho, o mandatário venezuelano gritou aos quatro ventos todo o seu apoio ao corpo armado, poucos dias depois de conhecer o contundente relatório da equipe encabeçada por Bachelet. “Vivam as FAES!”, exclamou em um ato de graduação de oficiais, onde aprovou o equivalente a mais de 40 milhões de reais para reforçar a Polícia Nacional.

Carmen Arroyo reuniu depoimentos sobre a morte de seu filho. Todos são anônimos, e poucos desafiam as forças de segurança governamentais, por medo de represálias. Os que presenciaram o assassinato coincidem em que a cena do crime foi manipulada para proteger os policiais. Seu caso se encontra paralisado nos tribunais, e ninguém foi detido. “Nem sequer tenho acesso a uma cópia do processo, embora tenha esse direito como vítima. Dificilmente se fará justiça com este Governo, porque eles precisam botar medo nas pessoas das zonas populares para que não protestemos. Muita gente é valente e está denunciando, embora ele (Maduro) reafirme o apoio aos seus assassinos”, diz.

A repressão cresceu num ritmo que acompanhou a perda de popularidade do chavismo. A Operação de Libertação do Povo, um programa de segurança criado em julho de 2015, acumulou um pavoroso recorde de denúncias por supostas execuções extrajudiciais. A atuação foi rejeitada por organismos internacionais depois de mais de 40 massacres e centenas de crimes. Acuado pelas críticas, Maduro modificou seu nome para Operação de Libertação Humanista do Povo, e sua ação foi desaparecendo. Em consequência, as FAES se posicionaram como o novo órgão repressor nos bairros.

Seus detratores dizem que se trata de um esquadrão da morte concebido sob medida pelo regime. Mas W.C., um oficial que desertou da temível polícia, afirma que grupos pró-governamentais estão por trás dessa sanha. “Os execuções, extorsões, sequestros e outros delitos dispararam desde que os coletivos se infiltraram dentro dos comandos, porque eles obedecem às diretrizes do regime. Nós, policiais, fomos formados para servir e proteger o povo. Isso é a partir de outubro de 2017, aproximadamente”. O atual chefe da FAES, José Miguel Domínguez, é citado em uma investigação do site Runrunes como ex-líder de um coletivo do bairro de Catia, em Caracas, por estar supostamente vinculado a homicídios desde 2000.

A Cofavic, uma ONG defensora dos direitos humanos, conta 9.500 casos de possíveis execuções extrajudiciais entre 2012 e 2018, um terço delas cometido entre 2017 e o ano passado. Quase a totalidade das vítimas são homens menores de 25 anos. “Isto demonstra que não são fatos isolados, e sim que ocorrem de maneira sistemática e que, infelizmente, têm um elemento comum e transversal: a impunidade institucional”, afirma Liliana Ortega, diretora da organização.

O país está mergulhado em uma crise de direitos humanos. À exceção do Governo de Maduro, dezenas de países e organismos multilaterais advertem sobre o desmoronamento da Justiça. Ortega detalha os entraves na apuração da violência estatal. “As linhas de investigação são precárias (…). A representação das vítimas nas investigações também é muito frágil. Há uma série de carências que são fóruns de impunidade. Isso produz uma multiplicação destes crimes na Venezuela, porque a impunidade tem um efeito multiplicador”, conclui.

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