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Quentin Tarantino e a fórmula secreta de suas trilhas sonoras

A música de ‘Era Uma Vez em... Hollywood’ revela as concepções estéticas do cineasta mais pop e resultou em um disco que nenhum algoritmo poderia inventar

Diego A. Manrique
Margot Robbie dança em um fotograma de 'Era Uma Vez em... Hollywood'.
Margot Robbie dança em um fotograma de 'Era Uma Vez em... Hollywood'.

Quentin Tarantino conta que, quando termina um roteiro, vai para sua sala de música. Lá, cercado por sua considerável coleção de discos, escrupulosamente ordenados por estilos, procura faíscas, o elemento catalisador: as canções, as peças instrumentais que acompanharão as sequências. É essencial, claro, a música do início, que determinará a têmpera, a pulsação do filme.

Acompanhado por Mary Ramos, a assessora musical de suas produções, Quentin vai detalhando suas seleções. Atenção: estas não são sugestões, gravações inseridas temporariamente até que um compositor profissional faça seu trabalho ou surja um tema acessível (e barato). Tarantino quer esses títulos e ficará decepcionado se não conseguir os direitos (embora, é claro, tenha alternativas). Musicalmente, é onívoro, por isso não vê inconveniente em usar fundos musicais de outros filmes, como mostra em Era Uma Vez em... Hollywood: uma melodia de Maurice Jarre tirada de Roy Bean – O Homem da Lei, de John Huston. Ou artistas identificados com outros territórios do cinema: aqui recupera I Cantori Moderni di Alessandroni, octeto vocal que colaborou com Ennio Morricone.

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Em sua nova obra, o principal fio condutor da música é a estação KHJ, muito popular no período de tempo em que se desenvolve a ação. A chamada "Boss Radio" destacava os sucessos do momento, com a particularidade de adicionar ao Top 100 da Billboard discos apreciados somente na região de Los Angeles e alguns caprichos dos locutores. Pensada para pessoas que se deslocavam de carro, Tarantino coloca assim muito hard rock: Bob Seger, os Box Tops, Mitch Ryder, os primeiros Deep Purple.

A equipe de Tarantino também fez consultas entre os círculos de fãs das ondas médias e localizou 17 horas de gravações da KHJ feitas entre 1968 e 1969: ouvintes que gravaram programas completos, com as apresentações de locutores, a publicidade, o tempo. O diretor decidiu que isso também entraria no filme: ele se lembrou do impacto do LP duplo com as canções de Loucuras de Verão, que incorporaram a voz do bastante lendário Wolfman Jack, que, aliás, aparecia nesse filme de George Lucas.

Tarantino queria ser rigoroso com a cronologia: não há canções posteriores a 1969, embora Lana del Rey e outras estrelas atuais estivessem dispostas a gravar músicas exclusivas para o filme. Também se esquiva de clássicos óbvios: California Dreamin ', hino imortalizado por The Mamas & The Papas, está presente, mas na leitura lenta do porto-riquenho José Feliciano. O mesmo acontece com The Circle Game, provavelmente a primeira música assinada por Joni Mitchell transmitida fora do mundo do folk, aqui na versão orquestrada de Buffy Sainte-Marie.

Animam o filme muitos sucessos de grandes figuras (Joe Cocker, Simon & Garfunkel, The Rolling Stones, Aretha Franklin) que não foram lembrados no álbum oficial, editado pela Sony. Pelo contrário, Tarantino se deleita em destacar músicas de Paul Revere & the Raiders, um grupo mais identificado com o som agreste de garagem do noroeste dos Estados Unidos do que com o pop refinado de Los Angeles. É um aceno para quem está por dentro: os Raiders foram produzidos por Terry Melcher, filho de Doris Day, amigo de Charles Manson e inquilino anterior da casa do 10050 Cielo Drive, onde Sharon Tate e seus amigos seriam massacrados.

O segredo de Tarantino como selecionador das músicas é que ele domina o cânone do pop, mas insiste em olhar para fora do comumente aceito. Para a festa na mansão da Playboy, recorre a um grupo comercial esquecido, os Buchanan Brothers, alardeando donjuanismo em Son of a Lovin 'Man. Redime Los Bravos do injusto rótulo de grupo de um único sucesso ao usar seu lúbrico Bring a Little Lovin'. Até faz referência ao marginalizado movimento chicano de Los Angeles com The Village Callers e sua irresistível Héctor.

Tarantino, na loja Amoeba, em Los Angeles, em 2009.
Tarantino, na loja Amoeba, em Los Angeles, em 2009.NOEL VASQUEZ (GETTY)

Com seu prestígio e seu orçamento, pode-se pensar que Tarantino tem acesso a toda a música que lhe agrade. Mas não. Depois do uso de Stuck in the Middle With You, do Stealers Wheel, em uma cena repugnante de Cães de Aluguel, alguns autores –ou suas gravadoras– querem evitar essas manchas indeléveis. Quentin reconheceu que, para Era Uma Vez em ... Hollywood, não conseguiu composições assinadas por Jimmy Webb e Laura Nyro.

Outros não veem nenhum problema em serem associados a momentos de violência. É o caso do grupo Vanilla Fudge, que costumava torturar canções alheias. Chegou a aceitar que Tarantino fizesse uma remontagem de sua You Keep Me Hangin’ On , a serviço das necessidades cinematográficas. Quentin confessa que esta foi uma das tarefas mais agradáveis da pós-produção.

A Caverno dos tesouros

Tarantino se beneficia por morar perto de uma das três lojas da Amoeba Music, fabulosa casa californiana de discos e vídeos (com preços razoáveis!). Localizada na Sunset Boulevard, orgulha-se de ter a maior seleção de música e cinema do mundo. Além de ser cliente regular, Quentin apresentou ali alguns dos seus lançamentos.

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