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Tribuna
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O mistério de João Gilberto é revelado outra vez

Em 'João Gilberto Live in Tokyo', lançado em março, os japoneses tomaram para si a responsabilidade de preservar a experiência estética do velho mestre em suas últimas lições

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In Tokyo, o álbum de João Gilberto gravado ao vivo em 2003 na capital japonesa, destacava-se na discografia do artista não somente pela maturidade das interpretações, mas também pela qualidade do registro sonoro. Há nesse álbum o encontro feliz entre o vigor de um João Gilberto realizado e o rigor meticuloso da captação executada pelo engenheiro de áudio Ken Kondo, auxiliado pelo diretor de palco Toshihiko Usami. Ambos passaram a trabalhar com o artista que, desde então até seus últimos concertos, em 2008, colocou-os como cláusula contratual para suas aparições. Seria esse o registro definitivo do balanço entre sons e silêncios que envolvia a mítica da perfeição almejada por João Gilberto.

É possível que João tenha se dado por satisfeito com o arco de obstinada arquitetura traçado entre Chega de Saudade, que, segundo Tom Zé, fora um prodígio da captação técnica nos idos de 1959, e o álbum In Tokyo, lançado em 2004. Contudo, um novo registro, agora em vídeo, de dois concertos feitos três anos depois, em 8 e 9 de novembro de 2006, no mesmo Tokyo International Forum, surge para ampliar a compreensão do alcance e da dimensão extraordinária da arte de João Gilberto. Lançado nos cinemas das três maiores cidades japonesas — Tóquio, Osaka e Nagoia — em março deste ano de 2019, e posteriormente comercializado com exclusividade para o mercado japonês em edição limitada e de luxo no formato Blu-ray, o filme João Gilberto Live in Tokyo, dirigido por Yutaro Mimuro estabelece um novo marco na obra de João, revelando novo ponto culminante do artista em sua esplêndida trajetória. O que se vê nas imagens ora reveladas é não menos que sublime.

O filme registra o canto do cisne de João Gilberto. Aos 75 anos de idade, sua obstinada busca estética encontra nessas apresentações o zênite de sua depuração. Na expressão de Carlos Drummond de Andrade, poeta tão caro ao músico, o que o filme revela é a própria “máquina do mundo” se entreabrindo, frente a um artista “semelhante a essas flores reticentes, em si mesmas abertas e fechadas”. Nos registros dos concertos derradeiros, em 2008, seu longevo vigor já declinara. Sua breve aparição em celebração aos 50 anos da Bossa Nova, com passagens por São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, foram, sabemos hoje, sua despedida dos palcos — com direito a um inusitado chamado, publicado a pedido do artista em jornal, para que amigos que não sabia mais como encontrar comparecessem à bilheteria; haveria ingressos para eles. Aos 77 anos, o intérprete já não sustentava, nos dedos e nas cordas vocais, a mesma força muscular necessária à precisão de artífice que caracterizou sua criação. Assim, com elegante discrição, seus concertos finais são de certa forma uma generosa despedida de quem parecia saber ter chegado a hora de descer o pano. A famigerada turnê dos seus 80 anos, cercada de contraditas, tumultos e desacordos, foi declinada pelo artista. A ameaça de um retorno, aliada à sua notória reclusão, alimentou a vã esperança por uma “saideira” que poderia ter sido e que não foi, abrindo uma torrente de falsas expectativas por novas aparições que a idade, antes mesmo de seu desaparecimento, tratou de afastar para nunca mais. Seu público, os jornais e até mesmo o sistema de Justiça (que tardou e falhou com João) pareciam não aceitar que, um dia, o músico também teria o direito à sua aposentaria.

No show de 2006, em Tóquio, porém, temos o João dos palcos por inteiro, na medida em que a tecnologia nos permite tê-lo ainda entre nós. E nele podemos observar sua joalheria musical tomando as câmeras por lupas, que isolam e ampliam detalhes de seu rosto, sua boca, seus dedos e o violão. A fotografia e edição das imagens apresentadas em Full-HD convidam à inspeção microscópica da laboriosa performatividade do intérprete. A montagem das imagens é meticulosa, e revela o momento preciso de cada protagonismo distribuído entre as partes — voz e violão — como o ataque dos dedos nas cordas do instrumento e o complexo movimento de um canto concentrado nos músculos da face e seus lábios de ventríloquo. É possível medir a espessura de suas unhas, contar as ranhuras no tampo do violão, ler o selo Di Giorgio dentro da boca do instrumento — lembrando que o mais internacional dos artistas brasileiros, podendo optar pela mais sofisticada luthieria do mundo, escolheu um pinho de fabricação nacional para acompanhá-lo. A certa altura, com o artista entregue à canção, a câmera fecha no rosto para seguir o lento percurso dos óculos a caminho da ponta de seu nariz. Algo mínimo, mas que em meio à performance de João gera imensa tensão. Cai, não cai? E ele cai. No momento final da canção, o músico é retirado do seu transe pela queda dos óculos sobre sua boca. Em uma fração de instante, João retoma a nota perdida e oferece mais um compasso à canção, como se tirasse o chapéu em mesura após um tropeço. João magnifica os detalhes. A zona proximal criada pelas imagens, juntamente com a impecável captação sonora, realiza a vocação utópica da tecnologia por recriar algo da experiência viva da performance situada em outro tempo e espaço.

A inclusão de músicas raramente visitadas no repertório tradicional de suas apresentações ao vivo também se faz notar. É o caso de Águas de março, composta por Tom Jobim em 1972 e gravada no calor da hora por João em seu mítico álbum branco de 1973. Outra raridade no repertório é Treze de ouro, de Herivelto Martins e Marino Pinto, que o artista manteria no set list de 2008. A primeira grande surpresa fica a cargo de Pica-pau, marchinha de Ary Barroso gravada em 1941 pelo grupo vocal Quatro Ases e um Coringa, que imediatamente vem somar aos patos, marrecos, lobos-bobos e sapos do bestiário joãogilbertiano. Em meio a um repertório de canções tão familiares, embora sempre redimensionado a cada execução, o surgimento de um tema “novo” é capaz de vidrar o espectador. Neste caso, ainda, a interpretação minimalista consegue transpor para o palco a própria vivacidade do carnaval de rua. Surpreende também a inclusão de Bim-bom, canção-manifesto da estética bossa-novista lançada em 1958, destaque entre o reduzido número de composições próprias do artista, e que não se sabia apresentada ao vivo havia cerca de 40 anos.

Ninguém entendeu melhor o que estava em jogo nas apresentações de João Gilberto do que o Japão. Os japoneses tomaram para si a responsabilidade de preservar a experiência estética — e por que não dizer mística? — do velho mestre em suas últimas lições, tratando-as com o devido apuro técnico e uma apreciação particular pelas dinâmicas que habitam o silêncio e o vazio. O filme João Gilberto Live in Tokyo não explica, ele antes revela ainda outra vez o mistério de João. No anedotário das excentricidades que circundavam o gênio recluso, refratário às demandas da sociedade do espetáculo, conta-se que os aplausos finais nos concertos feitos na Terra do Sol Nascente chegavam a algo entre 25 e 45 minutos de ovação ininterrupta. O tempo se dilata, é relativo, na presença de João Gilberto.

Ao Japão, a porção do Brasil ciente do que perdeu com a partida de João Gilberto já pode responder com sua mais profunda gratidão pelo presente ofertado: a possibilidade do reencontro com um de seus maiores artistas. Arigato gozaimashita!

Marcelo Noah é doutorando no Departamento de Línguas Neolatinas na Universidade de Duke, nos Estados Unidos. Em Porto Alegre, apresentou diversos programas sobre literatura e cultura na Ipanema FM e dirigiu a rádio Minima.fm.

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