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“Quando meninas ganharem bola em vez de boneca, o futebol feminino será um esporte de massa”

Aline Pellegrino, diretora da Federação Paulista de Futebol e vice-campeã na Copa da China em 2007, celebra a audiência recorde de 30 milhões de espectadores na Copa da França. Ela já sonha com o dia em que mulheres treinem equipes masculinas, “ainda um tabu”

Aline Pellegrino coordena o futebol feminino na Federação Paulista.
Aline Pellegrino coordena o futebol feminino na Federação Paulista.Divulgação (FPF)

Dos 6 aos 12 anos, sua rotina era jogar bola. Mas apenas no meio dos garotos. “Não tinha menina”, conta Aline Pellegrino, medalha de prata com a seleção brasileira feminina nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004. Aos 15, já havia se tornado profissional no São Paulo, atuando entre mulheres com o dobro de sua idade. Agora, como diretora da modalidade na Federação Paulista de Futebol (FPF), ela quer proporcionar às jovens atletas a oportunidade que lhe faltou: cumprir um ciclo de formação em categorias de base antes de se profissionalizar. “Minha geração não teve tempo de amadurecer. Ainda assim, conquistamos muita coisa. Se dermos a chance de as meninas se desenvolverem desde cedo, teremos resultados ainda melhores.”

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Em junho, a FPF realizou sua primeira peneira feminina e reuniu mais de 400 atletas entre 14 e 17 anos, que foram observadas por clubes de São Paulo. “Muito além de ter as meninas dentro da estrutura de competições, o objetivo é abrir espaço para a massificação, para que elas continuem praticando, seja no parque, no clube ou numa escolinha”, diz Pellegrino. Ela avalia que a expansão da modalidade ainda depende de uma mudança cultural, que incentive garotas a buscar o esporte na infância. “Quando meninas começarem a ganhar bola em vez de boneca, ou pelo menos puderem escolher o que quiserem, o futebol feminino também será um esporte de massa.”

Durante evento na Federação Paulista que premiou jogadoras da base, a dirigente percebeu que os olhos das meninas brilhavam ao descobrir, que, além de uma medalha, também ganhariam o brinquedo que ela nunca teve. “É bola, cara. É bola!”, conclama e gesticula com as mãos ao explicar o que desperta o entusiasmo das garotas que se interessam pelo esporte. “Eu nunca ganhei uma bola de presente do meu pai. E os moleques não me deixavam jogar. Se eu fosse a dona da bola, minhas chances de ser incluída nas peladas aumentariam”, recorda.

Para Pellegrino, a última Copa do Mundo feminina, vencida pelos Estados Unidos, é um divisor de águas. “Foi a primeira em que realmente se vendeu o Mundial como um produto. Só houve retorno de patrocínios e visibilidade porque a FIFA investiu muito no torneio. E aí desconstruímos um monte de coisa: ‘não dá audiência, não tem torcida, não tem patrocinador, não tem interesse’. Tudo isso caiu por terra”, diz. Com audiência recorde, especialmente no Brasil, onde as transmissões dos jogos da seleção alcançaram picos de 30 milhões de telespectadores, a Copa da França, realizado entre junho e julho deste ano, serve de referência para os planos de difusão na FPF. “É um case de sucesso. Se tiver futebol feminino com frequência na TV, num horário bacana, vai ter apelo. Precisamos dar oportunidade a quem gosta de assistir. Quem não gosta, muda de canal.”

Ela lembra que disputou uma final de Copa, em 2007, mas sem a mesma repercussão gerada pelo boom da transmissão em rede nacional pela Globo. “Fomos vice-campeãs, mas quase ninguém ficou sabendo. O futebol feminino era praticamente invisível no Brasil.” Também discorda da suposta necessidade de fazer adaptações no campo, como diminuição das traves, e nas regras do jogo em relação ao masculino para que a modalidade seja atrativa. “Vi gente dizendo: ‘Nossa, a Bárbara fez defesa de homem’. Não. Ela é capaz de defender uma bola difícil porque se prepara pra isso. Falhas acontecem, assim como no masculino um monte de goleiro com 2 metros de altura toma gol em cima da linha por cobertura.”

Em sua visão, o que falta ao futebol feminino é a garantia de boa estrutura e investimentos permanentes em formação de jogadoras. “Antes, não existia a figura do preparador de goleiras. A gente que ficava chutando bola nelas. Por isso, não tem que reduzir o tamanho da trave. O principal é dar condições para o desenvolvimento das atletas. Se tiver estrutura, a gente discute daqui a oito, dez anos se a trave precisa diminuir, se o tempo de jogo precisa ser menor, se a bola precisa ser mais leve. Mas, pra quem vive a modalidade, está mais do que provado que o problema não é esse.”

O poder da representatividade

Por ter sido atleta, Aline Pellegrino observa que as mulheres tendem a lidar melhor com treinadoras, embora o predomínio de homens no comando seja parte da realidade na maioria dos clubes. “Tive quatro técnicas muito boas. Não há o que criticar nelas. Mas tem um monte de homem que eu posso cornetar com força”, conta. “Há uma sinergia maior com a mulher. Mas quem disse que essa é a fórmula do sucesso? Com René [Simões], o trabalho foi fantástico. Temos de falar em profissional competente, seja homem ou mulher. O mercado deve ser aberto a todo mundo, inclusive pra que a mulher possa treinar no masculino, algo que ainda é um tabu.”

Recentemente, a CBF anunciou a troca de comando na seleção e contratou a sueca Pia Sundhage para o lugar de Vadão. Antes, a equipe brasileira só havia tido uma mulher no comando – Emily Lima, que assumiu o time em 2017, mas permaneceu no cargo por menos de um ano. Pellegrino defende ações mais inclusivas para estimular a formação de técnicas, como uma política de cotas em programas de capacitação profissional promovidos pelas federações. “Não é coitadismo. Temos de criar mecanismos pra ter mais mulheres fazendo esses cursos. Não podemos medir de maneira igual o que é diferente. Se a mulher que jogou bola não tem a mesma condição financeira dos ex-jogadores, por exemplo, o preço do curso não pode ser o mesmo.”

Pellegrino jogou como zagueira e foi capitã da seleção brasileira.
Pellegrino jogou como zagueira e foi capitã da seleção brasileira.Getty Images

Como uma das poucas representantes femininas entre dirigentes, ela acredita que, com o avanço do processo de valorização da modalidade, naturalmente surgirão outras mulheres interessadas em assumir posições de comando. “O futebol feminino só foi regulamentado no Brasil em 1983. Fomos proibidas de jogar por 40 anos. Quem ia querer ser técnica? Quem ia querer ser dirigente? Impossível. Daqui a 10 anos teremos muitas trabalhando na área. Antes, a gente não se via dentro do campo. Por que iríamos querer estar fora dele? Agora é o momento de abrir portas. Eu não cheguei pronta ao cargo e ainda estou aprendendo. Mas tive oportunidade de acertar, errar e aprender.”

Em julho, a dirigente da FPF esteve em Brasília para participar de uma homenagem do Ministério da Cidadania a ex-jogadores da seleção, em comemoração pelo Dia Nacional do Futebol. Enquanto campeões notáveis do time masculino demonstravam euforia ao saudar o presidente Jair Bolsonaro, que capitaneou a cerimônia, Pellegrino não esboçou nenhum sorriso ao subir ao palco para receber seu troféu e foi comedida ao cumprimentar autoridades. “Eu estava lá por todas as mulheres, recebendo uma homenagem justa dos representantes que estão de passagem no governo. É um espaço que devemos ocupar. E uma forma de cobrar indiretamente por medidas para o futebol feminino.”

No entanto, ela diz não enxergar um plano concreto para a modalidade por parte do governo federal, que, em junho, nomeou o ex-técnico da seleção, Kleiton Lima, para coordenar um projeto de desenvolvimento do futebol feminino que ainda não saiu do papel. “Na verdade, não é só uma questão do incentivo às mulheres. Qual é a política de governo para o esporte no país? Falta uma diretriz como um todo. Passamos por um momento delicado, em que o esporte perdeu muito espaço”, afirma Pellegrino, em alusão ao rebaixamento do Ministério do Esporte a secretaria vinculada ao Ministério da Cidadania.

Aos 37 anos, três deles dedicados à coordenação do futebol feminino em São Paulo, a ex-zagueira pretende seguir lutando pela continuidade dos investimentos. Depois de criar em 2017 o primeiro campeonato oficial voltado para garotas, o Paulistão sub-17, suas metas mais urgentes são a instituição de novas categorias de disputa na base e a ampliação da peneira no ano que vem. Para o futuro, a ambição é fazer com que a modalidade se torne tão reconhecida como a dos homens no esporte mais popular do mundo. “Há um longo caminho para que o futebol feminino seja verdadeiramente profissional no país. Quero ter a certeza de que não caminharemos pra trás. Quero que as meninas sonhem em ser jogadoras de futebol, e seus pais se orgulhem disso, como em qualquer outra profissão.”

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