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“A culpa pela mudança climática não é das vacas, é das pessoas”

Marta G. Rivera Ferre, membro do IPCC (painel que assessora a ONU sobre mudança climática) alerta que enquanto nos países desenvolvidos o consumo de proteína animal deveria ser reduzido, em alguns mais pobres teria de haver aumento

Manuel Planelles
Marta G. Rivera Ferre nesta quinta-feira em Foz do Iguaçu (PR).
Marta G. Rivera Ferre nesta quinta-feira em Foz do Iguaçu (PR).

Marta G. Rivera Ferre (Córdoba, Espanha, 1974) é a diretora da Cátedra de Agroecologia e Sistemas Alimentares da Universidade de Vic. Ela é uma dos 107 cientistas de 52 países que participaram do relatório sobre o uso da terra e mudanças climáticas do IPCC, o painel internacional que assessora a ONU no assunto. Rivera Ferre atende EL PAÍS por telefone, de Foz do Iguaçu (PR), onde participa de uma conferência.

Pergunta. As vacas são culpadas pelas mudanças climáticas?

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Resposta. As vacas não são culpadas, a culpa é das pessoas. Nos últimos 30 anos aumentou muito o consumo de carne e também da proteína animal de carne bovina, mas o que cresceu mais é o consumo de frango e de carne suína. De fato, hoje 77% dos animais criados para a alimentação no mundo são frango e porco; e 22%, carne bovina. Os porcos estão ligados fundamentalmente a um sistema de produção intensiva, enquanto na carne bovina isso depende do contexto e da região. E cada espécie contribui para as mudanças climáticas de maneira diferente. Os ruminantes, com a emissão de gás metano; os monogástricos, com a de óxido nitroso e CO2. O metano tem um potencial de aquecimento 28 vezes maior que o CO2 e dura dez anos na atmosfera. Mas o CO2 e o óxido nitroso duram mais de 100 anos. Portanto, as vacas não são as culpadas pelas mudanças climáticas, mas temos de repensar o fato de nossa sociedade consumir muita proteína animal e que esse consumo precisa ser reduzido.

P. O que a senhora destaca do relatório?

R. O relatório tem um enfoque abrangente, tenta abordar todo o sistema alimentar e não apenas o relacionado com as mudanças climáticas, que são o foco central. Também aborda, por exemplo, a saúde. E faz um vínculo entre termos uma dieta com alto conteúdo animal e muito desequilibrada (rica em açúcar e pobre em vitaminas e micronutrientes) e as mudanças climáticas. Se reduzirmos a proteína animal, teremos uma redução no uso da terra e nas emissões de gases de efeito estufa, e uma melhoria na nossa saúde.

P. Pode-se concluir no relatório que deveríamos deixar de comer carne ou proteínas animais?

R. Não, o relatório, como um outro publicado no The Lancet, diz que em algumas partes do mundo é imperativo reduzir o consumo de proteína animal. Sabemos que se o reduzirmos, não só o da carne, também de leite e ovos, poderemos reduzir as emissões de gases do efeito de estufa e ter um impacto benéfico na saúde. Mas, cuidado, há partes do planeta onde as pessoas precisam aumentar o consumo de carne porque têm uma dieta baixa em proteínas.

P. Portanto, nos países desenvolvidos tem que ser reduzido e nos países em desenvolvimento, não.

R. Isso porque é uma contribuição importante para eles. O relatório analisa diferentes dietas: as baseadas em peixes, a flexitariana (com baixo consumo de proteína animal), as vegetarianas, a mediterrânea ... E conclui que, em termos de emissões, a mais eficiente é a flexitariana. Mas, se for acrescido o fator saúde, a mediterrânea tem impactos muito bons na redução de CO2 e na saúde. É complexo. O relatório tenta escapar da mensagem simplista.

P. Qual o papel do desperdício nas mudanças climáticas?

R. Os desperdícios alimentares representam agora entre 8% e 10% das emissões. Mas há dois níveis: um é o das perdas que ocorrem da produção à distribuição no ponto de venda do alimento. Vemos isso na Espanha quando a laranja ou a melancia não são colhidas porque os preços estão muito baixos e os produtores não são compensados. Mas, na nossa parte do mundo, o que mais ocorre é o desperdício de comida doméstica. Aqui há um problema de rotulagem: o período de consumo preferencial definido na rotulagem é confuso. Mas há também a questão do planejamento da compra e de porções que são muito grandes, e a comida acaba sendo jogada fora. E isso que é jogado emitiu gases. Alguns estudos também chamam de desperdício o consumo excessivo. Por exemplo, na Austrália, 30% das emissões da indústria de alimentos têm a ver com consumo excessivo, ou seja, as pessoas comem mais do que precisam.

P. O setor dos alimentos é aquele em que o cidadão pode fazer mais contra as mudanças climáticas?

R. Diria que sim, porque são decisões que tomamos quase todos os dias. Mudar minha dieta e o modo como faço a compra, ou como cozinho, é algo que posso fazer hoje mesmo no jantar. Há uma margem de capacidade para ação imediata da população que é muito interessante. Embora também exista o que nas ciências sociais se chama de "ambiente obesogênico". Por exemplo, há áreas nos Estados Unidos que são conhecidas como desertos alimentares: são áreas pobres nas quais, em quilômetros e quilômetros, não há estabelecimentos onde se possam comprar frutas e verduras, e há apenas McDonald's e outros fast foods. Ou seja, contribuições de calorias vazias e gorduras. Essa população não pode comprar frutas e legumes. Primeiro, porque não tem acesso, não as têm ao alcance; em segundo lugar, por uma questão de preço. É verdade que o nosso contexto, o da Espanha, não é tão exagerado como o dos EUA, mas o acesso também é difícil. Em suma, não é apenas uma questão pessoal, as decisões devem ser tomadas na política.

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