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Em ‘Pico da Neblina’, atores retratam suas vidas na periferia em um Brasil onde a maconha é legalizada

Série da HBO dirigida por Fernando Meirelles e Quico Meirelles estreou neste domingo. Obra mostra um Brasil onde a maconha foi legalizada e as contradições de um país marcado pela desigualdade

Os personagens Biriba (Luis Navarro) e Salim (Henrique Santana), da série 'Pico da Neblina'.
Os personagens Biriba (Luis Navarro) e Salim (Henrique Santana), da série 'Pico da Neblina'.Divulgação
Felipe Betim

Imaginar um Brasil onde é possível fumar e vender maconha legalmente soa como delírio neste 2019. Nada tão distante e irreal no ano em que a ultradireita chegou ao poder com Jair Bolsonaro. Mas é justamente esse o desafio que Pico da Neblina toma para si. Com direção geral de Quico Meirelles, a primeira temporada da série de TV da HBO estreou no domingo, 4 de agosto, em mais de 70 países, entre eles o Brasil. Os cineastas Fernando Meirelles — diretor do aclamado Cidade de Deus —, Luiz Carone e Rodrigo Pasavento também dirigem alguns episódios.

A obra foi escrita por Chico Mattoso, Cauê Laratta, Mariana Trench e Marcelo Starobinas. Não apela, ao menos em princípio, para a utopia de um país onde a regulamentação do comércio e do uso da maconha resolveu todos os problemas relacionados a segurança pública e desigualdade. Pelo contrário. Biriba (Luis Navarro) mora na periferia de São Paulo e quer deixar para trás toda uma vida dedicada ao crime. Decide empregar os conhecimentos adquiridos com a venda de drogas para abrir um negócio dentro da lei com um investidor da classe alta paulistana, Vini (Daniel Furlan). Além de lidar com a inexperiência de seu sócio e as armadilhas do mundo corporativo, o protagonista da série não consegue se desvencilhar facilmente de seu passado. Ainda há negócios por resolver junto com seu melhor amigo, Salim (Henrique Santana), que decide continuar na vida do crime. As contradições e conflitos de um país marcado pela violência e pela desigualdade persistem.

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Navarro e Santana, que estão entre os 18 artistas em início de carreira convocados pela Internet, também são melhores amigos na vida real. Nascidos e criados na zona leste de São Paulo, nos bairros Cohab I e Ermelino Matarazzo, respectivamente, vivenciaram de perto a crua realidade que seus personagens retratam na série. "Um dos meus irmãos se envolveu [com o tráfico de drogas]. Porque são as oportunidades que a gente tem", conta Santana, chamado "de artista" em seu bairro porque, na periferia, ser artista "não é real". Foi durante os quatro anos que estudou para ser padre que começou a fazer teatro na Igreja. Em seguida foi estudar para ser ator. "Se eu não fizesse o Salim na série, era muito possível que eu precisasse ser, uma hora ou outra, o Salim na vida real", acrescenta.

Navarro fala sobre a importância de protagonizar uma série da HBO e levar para a televisão os dramas de personagens negros e de uma família negra. "Vejo as produções brasileiras crescendo, mas vejo os negros sendo figurantes ou tendo pequenas participações. Eles não têm história, não têm voz, não têm humanidade", explica o ator que interpreta Biriba, o único homem de uma família feminina. Sua irmã, representada pela atriz Leilah Moreno, é mãe solteira de duas meninas. "Retrata a minha própria família, a minha mãe. Eu acabei vivendo a minha pessoa com a personagem da minha filha. Ela dizia que era difícil contracenar comigo por ser igual a mim", conta Moreno, emocionada. Costumada a ser chamada para papéis musicais, viu-se surpreendida. "Eu achava que ia fazer algo totalmente diferente. Cheguei lá e acabei caindo dentro da minha casa. Essa série vai mexer com as pessoas. Muita gente que não tem voz vai se identificar nela".

Para Santana, a série "não é sobre maconha". A erva apenas ajuda a falar "sobre humanidade", "sobre pessoas". Ele não se vê retratando alguém que vive num submundo, mas sim num "ultramundo" onde "pessoas normais comercializam o que o sistema proíbe que elas comercializem". Por isso, diz esperar que ninguém veja Salim, seu personagem, como um mero traficante. "Ele não é uma pessoa má. Ele é uma pessoa que comercializa produtos e vive disso. Vive na realidade e sabe como as coisas funcionam. E ele vai viver desse trabalho e alcançar seus objetivos com o que se tem. E quem possui roupa bonita, carro bonito e piscina onde a gente nasceu?".

"Exercício de futurologia"

Fernando Meirelles fala sobre os desafios para a sua produtora, a O2 filmes, na hora de conceber uma série cujo núcleo principal é negro. "Colocamos um consultor ligado ao movimento negro para ler e rever os roteiros. Estávamos indo por um caminho muito errado. Foi boa a contribuição e demos um passo além. Decretamos que na produtora todos os departamentos deveriam ter pelo menos um negro ou mestiço na equipe", explica. "Fico feliz porque, na foto final da produção, 60% da equipe é mestiça ou negra, e parte dela ficou na produtora". 

Cauê Laratta foi quem idealizou a história anos atrás. O debate parecia avançar na sociedade e nas instituições, com o Supremo Tribunal Federal e a Câmara dos Deputados dando passos que poderiam resultar em uma nova política de drogas em pouco tempo. "Tínhamos medo de estar inventando um monte de coisa que, em 2018 ou 2019, com a legalização, não tivesse acontecido. E a série perdesse interesse", explica Quico Meirelles, que faz a direção geral da série. A obra não aborda o debate sobre política de drogas. O ponto de partida já no primeiro episódio é a maconha regulamentada, a partir de um modelo parecido ao de alguns Estados norte-americanos, que permite que empresários comercializem e lucrem com o produto. "É um exercício de futurologia. A gente vai tentando imaginar todos os desdobramentos que poderia ter para a sociedade civil, os costumes, os empresários, os traficantes...", acrescenta. A gravação de novas temporadas dependerá do sucesso da primeira.

Em meio a polêmica levantada por Bolsonaro, que ameaçou fechar a Agência Nacional do Cinema (Ancine) e questionou o financiamento de produções brasileiras com dinheiro público, a HBO Latin America garante que Pico da Neblina foi 100% financiada com recursos próprios da companhia. Tão irreal quanto apostar que a maconha possa ser regulamentada em pouco tempo é acreditar que uma obra como essa passaria pelo "filtro" prometido pelo presidente nas produções audiovisuais brasileiras. "As drogas de Brasília não afetam as drogas da série", ironiza Fernando Meirelles.

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