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Trezentos minutos de futebol, cem horas de guerra

El Salvador e Honduras entraram em conflito armado depois de um jogo vencido pelos salvadorenhos, que acendeu o ódio e o nacionalismo. Após 50 anos, a revanche dos hondurenhos

Rodríguez e Mendoza atuaram no jogo que precedeu a guerra.
Rodríguez e Mendoza atuaram no jogo que precedeu a guerra.Marvin Recinos/Orlando Sierra (AFP)

No fim da tarde de 14 de julho de 1969, soldados do exército de El Salvador cruzaram a fronteira e invadiram Honduras, já sob intenso bombardeio aéreo. Semanas antes, as seleções nacionais haviam disputado três partidas pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 1970, marcadas por uma atmosfera de rivalidade e violência sem precedentes. Ainda que os jogos não tenham sido o verdadeiro motivo para sua eclosão, o conflito armado ficou popularmente conhecido como a “Guerra do Futebol”. Durou apenas quatro dias, mas as consequências da batalha repercutem até hoje, cinco décadas depois, nas relações políticas, diplomáticas e esportivas entre as duas nações da América Central.

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Naquela época, hondurenhos e salvadorenhos viviam a expectativa de disputar pela primeira vez um Mundial. Em meio à euforia nos estádios, observavam o acirramento das tensões governamentais. Um dos países de menor extensão territorial do continente, El Salvador era também um dos mais povoados. Nos anos 50 e 60, houve a explosão da migração de camponeses salvadorenhos para Honduras, que ocuparam principalmente as regiões dominadas pelo cultivo da banana. Com maior território e pouco mais de 2 milhões de habitantes, o país vizinho chegou a ter quase 20% de sua população composta por imigrantes provenientes do outro lado da fronteira. As terras já não eram mais suficientes para tanta gente, e a insatisfação de latifundiários e grandes empresas do agronegócio, muitas delas norte-americanas, havia chegado ao limite.

Para exaltar os ânimos, as Eliminatórias da Concacaf fizeram os caminhos de El Salvador e Honduras se cruzarem nas semifinais. Torcedores incorporaram a animosidade da política. No primeiro jogo, em Tegucigalpa, os donos da casa venceram por 1 a 0, contando com o apoio de uma torcida que tinha feito panelaço e foguetório em frente à concentração dos adversários na noite anterior. Os salvadorenhos resolveram devolver a hostilidade na mesma moeda para o jogo da volta, em San Salvador. O hotel da delegação de Honduras foi apedrejado, com direito a bombas e ratos mortos arremessados no saguão. Diante da ameaça de invasão dos torcedores, atletas precisaram sair às pressas pelos fundos para se refugiar em casas de compatriotas instalados na cidade. No estádio de Flor Blanca, as torcidas brigaram antes, durante e depois da partida. Dois hondurenhos acabaram mortos. Os visitantes, naturalmente, sentiram a pressão. Levaram três gols no primeiro tempo e saíram derrotados.

Um jogo de desempate seria disputado no México em 27 de junho daquele ano. Na véspera do duelo, o governo de Honduras anunciou o rompimento das relações diplomáticas com El Salvador. “Havia um clima muito tenso no ar”, lembra o ex-atacante salvadorenho Mauricio Pipo Rodríguez. Aproveitando uma falha da defesa, ele se antecipou ao goleiro, já na prorrogação, para marcar o gol da vitória de seu país por 3 a 2. Pelo lado hondurenho, abatimento total. “Sabíamos da repercussão que aquela derrota teria. Fizemos de tudo pela classificação, mas infelizmente não foi possível”, contou à AFP o ex-capitão de Honduras, Tonín Mendoza, que foi avisado por um embaixador ainda no vestiário do estádio Azteca sobre a ruptura dos vínculos institucionais com o país rival. Desde então, o relacionamento entre as duas nações – ou, pelo menos, entre seus governos – jamais foi o mesmo.

Pipo Rodríguez marcou o gol da vitória de El Salvador.
Pipo Rodríguez marcou o gol da vitória de El Salvador.Getty Images

Depois de 300 minutos de futebol, incluindo a prorrogação no último jogo, bastaram 17 dias de reiteradas ameaças e provocações para o início da guerra. O conflito se estendeu até 18 de julho, quando a Organização dos Estados Americanos (OEA) interveio na discórdia e negociou um cessar-fogo de ambas as partes. Houve aproximadamente 5.000 mortos, entre militares e civis, e outros milhares de feridos. Assim como na contenda esportiva, o governo de El Salvador cantou vitória na guerra, mas o resultado logo revelaria que o embate não teve vencedor.

Prestigiados pela atuação nos frontes, militares ascenderam ao poder em El Salvador e, mais tarde, implantaram regimes ditatoriais que culminariam em uma das mais longas e sangrentas guerras civis da América Central. Da parte de Honduras, o país rompeu acordos comerciais não só com os inimigos de guerra, mas com todo o grupo que compunha o Mercado Comum Centroamericano, levando à dissolução da integração regional. Uma parcela de seu território permaneceu ocupada por tropas salvadorenhas até o início de agosto. Dessa forma, o governo hondurenho colocou definitivamente em marcha a expulsão massiva de camponeses vindos de El Salvador, uma política de reforma agrária que já havia sido denunciada pela diplomacia do país vizinho como “expropriação de terras, perseguição e genocídio”, configurando o estopim para o confronto.

Apesar de todo o contexto sociopolítico envolvido na trama, o futebol, utilizado como subterfúgio dos governos e elites econômicas para insuflar sentimentos nacionalistas, acabou herdando a fama por ter desencadeado a batalha fora do campo. “Os jogos entre Honduras e El Salvador pelas Eliminatórias foram somente a gota d’água que fez o copo transbordar”, afirma o historiador hondurenho Jorge Amaya. “Nenhum povo seria tão estúpido a ponto de entrar em guerra por causa do resultado de uma partida.” Além da crise migratória, Amaya aponta a histórica falta de entendimento por delimitações de fronteiras e discordâncias nas relações comerciais como os principais motivos que provocaram o conflito armado.

Para o historiador, a cobertura da imprensa contribuiu para acirrar rivalidades nas torcidas e, sobretudo, pintar os jogos eliminatórios como causador da guerra. Ao reportar notícias do enfrentamento bélico para jornais europeus, o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski teria sido o primeiro a usar o termo “Guerra do Futebol”. Mais tarde, esse seria o título do livro que publicou sobre o conflito. Porém, tanto em Honduras como em El Salvador, historiadores preferem chamá-la de “Guerra das 100 Horas”, em referência ao tempo de duração das ações militares. “É injusto dizer que aquelas partidas motivaram uma guerra. Isso, de certa forma, desmerece nossa vitória”, diz Pipo Rodríguez, que ressalta a garra dos salvadorenhos para superar o cansaço na prorrogação, a chuva que encharcou o gramado no último jogo e a beligerância dos torcedores nas arquibancadas.

Armistício, revanche e paz

Terminada a guerra, El Salvador disputou, ainda em 1969, a final das Eliminatórias da América Central contra o Haiti. Voltou a vencer na prorrogação do jogo de desempate e conquistou a inédita vaga em uma Copa do Mundo. Enquanto isso, o governo do país seguiu alimentando rixas com Honduras. O Tratado de Paz só foi assinado em 1980. Um ano depois, as duas seleções voltariam a se encontrar nas Eliminatórias para o Mundial de 82. Os hondurenhos terminaram a competição invictos e chegaram classificados à última rodada. Já os salvadorenhos torciam para que o México não vencesse os vizinhos. O jogo acabou empatado e, no fim das contas, Honduras e El Salvador celebraram a classificação conjunta para a Copa.

“Nossos maiores rivais no futebol sempre foram México e Costa Rica. Nunca houve rivalidade com El Salvador, nem dentro nem fora de campo”, explica Jorge Amaya. “Somos povos de culturas, histórias e gostos muito parecidos. Não há razão para brigarmos. Com exceção do período da guerra, em que autoridades dos dois países manipularam as paixões geradas pelo esporte, hondurenhos e salvadorenhos sempre nutriram admiração mútua.” Pipo Rodríguez endossa a visão do historiador. “A verdade é que nós, jogadores, sempre nos respeitamos. Depois daqueles jogos, voltei a encontrar com colegas da seleção de Honduras em eventos festivos e até hoje mantenho contato com alguns deles. Jamais tivemos qualquer problema.”

Seleções se enfrentam pela Copa Ouro.
Seleções se enfrentam pela Copa Ouro.AFP

Exatos 50 anos após o rompimento de relações diplomáticas, El Salvador e Honduras se enfrentaram novamente em um torneio continental. Na última rodada da Copa Ouro, em junho deste ano, os salvadorenhos precisavam apenas de um empate para se classificar às quartas de final. Eram favoritos, já que os hondurenhos amargavam duas derrotas e não tinham mais chances de avançar na competição. Antes da partida, milhares de torcedores de El Salvador, em ampla maioria no estádio da Califórnia, em Los Angeles, davam a vitória como certa e não perdiam a chance de brincar com a situação dos rivais. “É melhor Honduras nem jogar”, estampava o cartaz exibido por um torcedor.

O primeiro tempo terminou sem gols. Entretanto, na etapa final, Honduras marcou quatro vezes para decretar a eliminação de El Salvador meio século depois da declaração de guerra. Com a inesperada goleada, a classificação para as quartas caiu no colo do modesto time de Curaçao, estreante no torneio. Treinador da equipe salvadorenha, o mexicano Carlos de los Cobos rechaçou qualquer tipo de influência do peso histórico dos confrontos de cinco décadas atrás no tropeço de seus comandados. “Foi um acidente. Estamos sujeitos a isso no futebol.” Por outro lado, o meia Acosta, autor de um dos gols, não hesitou ao responder se o sentimento de revanche havia inspirado a vitória hondurenha. “Sim, teve um sabor especial.”

Atualmente, as relações políticas entre El Salvador e Honduras seguem estremecidas. Eleito este ano, o presidente salvadorenho Nayib Bukele não reconhece a legitimidade do governo de Juan Orlando Hernández, a quem se refere como ditador. O mandatário hondurenho não foi convidado para sua posse, no começo de junho. No futebol, a rivalidade respeitosa permanece inalterada entre as seleções. Apesar das 34 faltas, o último duelo em campo registrou apenas dois cartões amarelos. Fora do estádio, torcedores que ostentavam as duas bandeiras pelas ruas de Los Angeles conviviam em plena harmonia, como se a guerra nunca tivesse existido.

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