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Coluna
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O perigo de que o Brasil considere normal sua atual crise política

Nada pode ser pior para um país do que quando se acostuma a não perceber que há algo de podre dentro dos palácios do poder

Juan Arias
CARL DE SOUZA (AFP)

O dramaturgo e poeta Bertolt Brecht, conhecido por sua famosa frase: “Tristes os povos que precisam de heróis”, escreveu também algo que pode ser de atualidade no Brasil convulsionado de hoje: “Suplicamos expressamente”, escreve, “que não aceitem o que é de hábito, como algo normal, porque em tempos de desordem, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer normal”.

O colunista do jornal Folha de S. Paulo, Leandro Colon, em seu artigo “É sério isso?”, também lançou o alerta de Brecht. Critica que podemos tomar, por exemplo, como jocosas as afirmações do presidente de extrema direita, Jair Messias Bolsonaro, quando na verdade elas implicam uma realidade grave e perigosa. E destaca dois exemplos de dias atrás, quando o presidente perguntou sobre a morte do músico João Gilberto, chorado dentro e fora do Brasil, tudo o que lhe ocorreu comentar foi: “Pessoa conhecida. Nossas condolências à família, tá ok?”. E em relação às críticas feitas por alguns chefes de Estado europeus sobre a política do presidente sobre a Amazônia, limitou-se a dizer: “O Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer”.

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O que melhor retrata essa realidade, não só política, mas também psiquiátrica de Bolsonaro, que corre o perigo de ser tomada como normal, é a análise publicada no jornal O Estado de S. Paulo por Marcelo Godoy, sobre a importância que o presidente dá em seus lives diários nas redes às questões mais graves que angustiam o Brasil. Durante 9 horas e 26 minutos Bolsonaro falou à nação sobre 50 assuntos diferentes. O que surpreende é a importância hierárquica que concedeu a esses problemas, algo que pareceria mais uma piada do que uma realidade.

Alguns exemplos desse estudo revelam que não estamos diante de uma realidade normal, já que a importância dos problemas que hoje afligem o país privilegia os mais esquecidos e insignificantes, enquanto questões menores atraem as simpatias do presidente. Dos 50 assuntos analisados pelo presidente, sabem quais foram os três mais importantes? Talvez a educação, a saúde, o desemprego de 14 milhões de pessoas, o meio ambiente, as questões sociais mais urgentes como a falta de moradia, a pobreza que retorna ao Brasil? Não. Os assuntos que aparecem nos três primeiros lugares de suas preocupações são: a pesca, a Internet e as armas, enquanto o desemprego está em 44º lugar, a moradia em 47º, a educação em 22º, a saúde em 20º e o meio ambiente em 19º. O tema candente da aprovação da reforma da previdência que mantém o país em suspense e apreensivo porque sem sua aprovação o futuro econômico do Brasil se mostra trágico, próximo da bancarrota, aparece apenas no 24º lugar de sua atenção.

Além disso, no dia 4 foi aprovado, depois de semanas de dura discussão, o documento da Comissão da reforma da previdência para passar agora à aprovação em dois turnos pela Câmara dos Deputados e depois pelo Senado. Sabem quanto tempo o presidente dedicou para comentar essa data tão importante? Nem um segundo. Ele a esqueceu em seu live. Falou, isso sim, de seu assunto favorito: a pesca.

Se, como alertou Brecht anos atrás, pode acabar trágico “aceitar como normal” o que na realidade são tempos de “confusão organizada, arbitrariedade consciente e humanidade desumanizada”, o Brasil pode estar no caminho desse perigo ao aceitar como normal atitudes do presidente que não apenas confundem como podem imunizar e cegar uma sociedade em crise como a brasileira.

Outro grande dramaturgo do passado, William Shakespeare, nos deixou em sua obra Hamlet a misteriosa frase “Há algo de podre no reino da Dinamarca”. Traduzida livremente a hoje e conectando-a com as palavras de Brecht, poderíamos dizer que também há algo de podre nessa presidência de extrema direita brasileira se para seu presidente são mais importantes, por exemplo, a pesca e as armas do que a educação, o desemprego e a saúde das pessoas. E nada pode ser pior para um país do que quando se acostuma a não perceber que há algo de podre dentro dos palácios do poder.

E para terminar esta coluna em uma nota feliz, ontem eu encontrei na televisão o querido filme Sempre ao Seu Lado, de Lasse Hallström, com Richard Gere e Sarah Roemer, que conta a história real do cão Hachico, que ia todos os dias à estação onde seu dono, Hidesaburo, professor de Agricultura da Universidade de Tóquio, tomava o trem. Quando era vivo, seu cão o acompanhava todos os dias à estação e esperava por ele na hora de seu retorno. Uma vez morto seu dono, Hachico continuou indo à estação para esperá-lo durante nove anos e dez meses. Ali ficou doente e morreu esperando em vão por seu dono. No filme, alguém pronuncia uma frase que me ficou gravada e que voltou à memória ao escrever esta coluna: “Deus deixa cartas espalhadas nas ruas e praças da cidade”. Gostaria de perguntar aos leitores o que diriam essas cartas de Deus se fossem deixadas hoje nas ruas do Brasil. Podem adivinhar?

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