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Os 15 dias loucos de Wynton Marsalis em São Paulo

"Tudo tem sido muito rápido e absolutamente perfeito", diz o músico norte-americano, que veio apresentar 'O que é Jazz?'

Apresentação da orquestra no Campo Limpo, em São Paulo.
Apresentação da orquestra no Campo Limpo, em São Paulo.Divulgação
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Falta meia hora para o show. Wynton Marsalis (Nova Orleans, 1961) recebe o jornalista em seu camarim no Teatro do SESC Pinheiros. "Se você não se importa, vou passando a camisa e enquanto isso podemos conversar." O jornalista foi alertado: Marsalis tem delimitado cada nanossegundo de seu tempo em São Paulo.

Pergunta. Como é lidar com um presidente que expressou seu absoluto desdém pela música do jazz?

Resposta. Eu lhe pergunto: que presidente tivemos que goste de jazz? Por acaso, o presidente que tínhamos antes gostava de jazz?... tudo depende de estarem precisando de recursos, porque pode ser que dizer que gosta de jazz seja a melhor maneira de assustar os investidores. No final, temos um presidente que foi eleito. Se você não gosta dele, mexa o traseiro e mude seu voto: é fácil.

O vapor exalado pelo ferro de passar roupa faz com que a temperatura ambiente no camarim atinja cifras mais típicas do deserto de Lut, no Irã. Wynton se empenha em eliminar a ruga rebelde enquanto busca em seu interior a resposta adequada à pergunta que acaba de ser feita. "Este show é um bom exemplo do espírito que reina na orquestra, porque você não vai encontrar muitos músicos de jazz que concordem em tocar em um gig às 10 horas da manhã sabendo que nessa noite vão ter de tocar de novo. O normal é que te digam: "olhe, procure algum outro porque eu, a essa hora não funciono". E eu sei que isso não os deixa felizes, mas, no final, estão todos aqui pontuais como um relógio, e eu sei que vai ser um show memorável.”

Wynton está em São Paulo há 10 dias com seu Jazz at Lincoln Center Orchestra (16 músicos). O programa de atividades inclui um total de 11 shows, dois ensaios abertos ao público, duas conferências, duas mesas redondas e quatro oficinas, além dos inevitáveis encontros com a imprensa e as recepções com ou sem feijoada no meio. "Tudo tem sido muito rápido e absolutamente perfeito", comenta. "Tenho que dizer: vocês têm no Sesc uma organização modelar, porque não é uma iniciativa puramente estética ou recreativa, mas, acima de tudo, educacional. Esse é o nosso propósito: ensinar o que o jazz é". O show comentado O que é Jazz?, programado para a manhã do sábado, 29 de junho, foi inspirado nos Concertos para a Juventude, de Leonard Bernstein. "A primeira coisa que quero deixar claro é que não ensino música, mas ensino vida."

Apresentação da Jazz at Lincoln Center Orchestra em Itaquera, São Paulo.
Apresentação da Jazz at Lincoln Center Orchestra em Itaquera, São Paulo.Matheus José Maria (Divulgação)

No palco, os 16 integrantes da JALCO põem à prova os conhecimentos sobre o jazz, ou sobre a vida, recém-adquiridos pela garotada que assiste ao evento. "Há três etapas no aprendizado: 'a imitação', o 'call & response' e o 'faça você mesmo'. Chegando a esse ponto, você já fala a linguagem do jazz." Renatinho, Aisha, Bia e Dora acabam de chegar ao "faça você mesmo". Seus duetos improvisados com diversos membros da orquestra demonstram uma desenvoltura incomum em seus poucos anos. "É preciso entender que o difícil não é tocar: o verdadeiramente difícil é escutar. Não importa se você é uma criança que assiste pela primeira vez a um recital de música ou conta já com alguma experiência: sente-se e ouça o que eu quero lhe contar. Esta será sua primeira aula de música."

Caso não tenha ficado suficientemente claro, Marsalis está aqui em uma missão de Deus. "Sou de Nova Orleans e tenho um papel como o guardião da Grande Tradição do jazz. Esta é a minha tarefa, e me dedico a ela de corpo e alma." Do pirralho metido de suas primeiras turnês com os Jazz Messengers de Art Blakey ao atual messias de gravata e paletó azul marinho há um longo caminho. Marsalis, garante, aprendeu a lição: "As pessoas veem a cena afro-americana como uma enorme lata de lixo em que cabe tudo. É a imagem negativa que o rap oferece ... o problema é que os meninos não têm a oportunidade de escutar outra coisa. Por isso, a primeira coisa a fazer é democratizar o acesso à informação. O resto virá por acréscimo".

Entende-se que, para Marsalis, nada pode ser comparado às várias visitas que a orquestra fez a diversas comunidades da periferia de São Paulo (Campo Limpo, Itaquera...). "Entendo perfeitamente quanto é importante para eles termos tocado de graça porque eu venho de uma dessas comunidades na Louisiana onde não havia nada ... Eu simplesmente detestava o jazz, porque não sabia o que era, até nos mudarmos para Nova Orleans, e meu pai, que é músico, me envolver no assunto." Quarenta anos depois, o filho do pianista reina sobre um império colossal com sede em Nova York e ramificações nos cinco continentes.

"Se cheguei até aqui é porque sempre levei meu trabalho muito a sério, desde o primeiro momento, quando as pessoas se perguntavam o que estava fazendo esse moleque agindo daquela maneira... Acontece que não tenho medo de dar minha opinião, e sei que há muita gente que não está de acordo com o que eu faço, e me chamam de "retrógrado" e não sei quantas coisas mais... Ora, muito bem. Cada um segue seu próprio caminho, o importante é conversar e contrapor opiniões".

Para o show da noite a JALCO vai contar com a ajuda de alguns "velhos amigos" nos seus programas — Ari Colares, Hamilton de Holanda, Nailor Proveta — ou fora dele — Mestrinho, Gabriel Grossi. Serão três horas e 15 minutos extenuantes de música a meio caminho entre o jazz canônico — Duke Ellington, Count Basie — e as composições com o claro sabor local de Moacir Santos, que será lembrado. "Num momento em que a única coisa que circula é a música como um produto comercial, estamos criando a base para uma rede de intercâmbio de informações, e para isso temos que nos encontrar com pessoas que amam a música, como Ari e Nailor, ou Danilo Santos de Miranda (diretor do SESC no Estado de São Paulo) e Iñaki Añúa, do Festival de Jazz de Vitória, na Espanha, para entre todos conseguir que as pessoas saibam quem são Pixinguinha e Thelonious Monk, Moacir Santos e Horacio Salgán".

Os mesmos protagonistas voltariam a se reunir na manhã seguinte, no domingo, para o show Grande Finale, realizado no Parque Dom Pedro II, no centro da cidade, sob um sol de (in)justiça. Nem por isso se amedrontaram os milhares de paulistanos que converteram o espaço solarium em uma metáfora do Brasil que um dia foi e já não é: camisetas de AC/DC highway to hell e túnicas estampadas trazidas de além dos mares, gritos de "Fora Bolsonaro!" e bandeiras LGBT balançando ao vento... Uma honrada mãe de família dança ao som de The Kid from Red Bank com seus dois rebentos, um em cada braço. “Isso é o jazz?”, solta a menina para o pai de barbas longas e alvas, “então, eu gosto”. Ao longe, Wynton contempla a cena visivelmente satisfeito: objetivo realizado. "O jazz nos ensina a sermos nós mesmos e, ao mesmo tempo, aceitar as diferenças e viver com elas em liberdade. Não há nada mais democrático no mundo do que uma orquestra de jazz. "

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