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Barbárie em tempos democráticos: por que o Estado é responsável por tantas mortes

Especialistas ouvidos pelo EL PAÍS explicam por que depois da Constituição de 1988 a violência aumentou no Brasil e como o poder público é parte do problema

Ativista mostra imagem de rapaz vítima da violência do Estado.
Ativista mostra imagem de rapaz vítima da violência do Estado.Toni Pires
Felipe Betim

O Brasil vive uma contradição nas últimas décadas. A transição da ditadura militar (1964-1985) para a democracia resultou em mais liberdades políticas e direitos sociais, algo que a Ciência Política vê com unanimidade. Contudo, ela não foi capaz de garantir o mais essencial: o direito à vida. Todo o contrário. Com a chegada da democracia, o aparato repressivo do Estado deixou de mirar a oposição ao regime dos generais e se voltou para o tráfico de drogas em um momento de explosão dos crimes urbanos. Época em que o Ocidente, especialmente os Estados Unidos, declarava a chamada guerra contra as drogas nos anos de 1970. E aqui não foi diferente. Mais de 30 anos depois da promulgação da Constituição de 1988, os índices de violência são alarmantes: o último recorde é de 2017, ano que registrou 65.602 homicídios, dos quais no mínimo 5.159 foram reconhecidamente cometidos por forças policiais, segundo os dados oficiais registrados e agrupados pelo Atlas da Violência 2019 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo 12º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Por isso, dezenas de grupos de mães de jovens mortos se unem para denunciar as violações cometidas pelo Estado em nome da ordem. Algo comum em ditaduras.

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Algumas questões surgem diante desse cenário. Por que o Estado brasileiro continua matando de forma ilegal e ilegítima em tempos democráticos? Por que ele é parte do problema e não da solução? O que deu errado na transição para a democracia para que os índices de violência aumentassem tanto? Para entender essas e outras questões, o EL PAÍS escutou especialistas em segurança pública por telefone e durante o seminário sobre letalidade policial organizado pelo Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, nos dias 13 e 14 de junho.

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A cultura brasileira da violência

Entender como as instituições operam significa também entender o que a sociedade demanda delas. E entender uma história social e política marcada pela violência desde que o território brasileiro foi ocupado por colonizadores europeus. "Essa violência foi se revelando de diversas formas ao longo da História, primeiro contra a população indígena e depois contra os escravos negros. Também contra os imigrantes, nos conflitos fundiários, na criminalidade urbana a partir dos anos 70 e 80...", explica o sociólogo Renato Sérgio de Lima, presidente do FBSP. Hoje, mais de 500 anos depois da chegada dos portugueses, impera a máxima "bandido bom é bandido morto" na sociedade. "Crime existe em países ditos desenvolvidos. Mas, ao contrário deles, não criamos uma ética pública em que nosso limite é a não-violência. Ela nunca foi interditada nem ética nem politicamente no país", acrescenta. Significa que que a violência não só faz parte de nossa história como também a toleramos. “Só que toleramos a violência sempre com o outro, e com quem achamos que é matável”, completa.

A violência estatal no cotidiano

Considerando que a força letal muitas vezes é necessária, o que leva um policial a matar de forma ilegítima? O coronel da reserva Diógenes Lucca, que comandou a Rota, tropa de elite da PM paulista, tem quatro hipóteses: mais uma vez, a ideia muito presente na sociedade de que "bandido bom é bandido morto"; um sistema de segurança pública que, devido à não-regulamentação da Constituição, é pouco eficiente e "faz com o que o policial sinta que enxuga gelo com o ralo do chão entupido e a torneira aberta"; uma "subcultura silenciosa e ativa de não cumprir as normas"; e, por fim, "um sentimento de invisibilidade que o policial tem ao não ver ações tremendamente meritórias, apreensões fantásticas e investigações trabalhosas serem reconhecidas".

Sobre a falta de regulamentação da Carta Magna mencionada pelo coronel, o presidente do FBSP explica que em seu artigo 144 estão descritas as instituições que devem cuidar da segurança pública. Como essas organizações devem atuar? Em que circunstâncias as polícias poderão matar? Até hoje essas e outras questões não foram especificadas pelo Congresso, conforme previsto. “Temos no Brasil 27 Polícias Civis, 27 Militares, uma Rodoviária, uma Federal, Justiça Militar, 27 Tribunais de Justiça, 1000 e poucas guardas municipais... Sem nenhum tipo de coordenação e lógica de governança sobre como fazer segurança e justiça criminal”, completa Lima. Isso acaba gerando uma "bateção de cabeça" institucional, criando brechas para que organizações criminosas atuem e deixando à cargo do policial na rua fazer a interpretação entre a fronteira do que é legal ou ilegal, quem é suspeito e não é, quem vai ser abordado ou não, observa o sociólogo e professor do departamento de Gestão Pública da FGV. Ele ainda lembra que as leis que deveriam guiar a segurança pública — como o Código Penal, o Código de Processo Penal, entre outras legislações — são anteriores à Constituição de 1988. "Como podemos pensar que o padrão democrático do Estado de Direito vai ser implementado se toda a lógica infraconstitucional não funciona a partir da Constituição de 1988?", questiona.

Samira Bueno, socióloga e diretora executiva do FBSP, argumenta que "estimulamos um quadro de guerra com fuzil, dando a pena de morte para que os policiais decidam quem vive e quem morre na ponta, deixando-os também vulneráveis e esquecendo que eles têm de estar no dia a dia para garantir uma convivência pacífica". Em 2017, 367 agentes foram mortos, segundo os dados agrupados pela organização que dirige. "Eles também estão sofrendo e perdendo. Isso não é vida", acrescenta.

VÍDEO | As mães que lutam pelos filhos que o Estado levou.Vídeo: Toni Pires

Instituições arcaicas

Instituições que falham em garantir a paz têm também a ver com uma transição democrática incompleta. O sociólogo Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, destaca que em transições como a brasileira "há um processo de reforma das instituições, inclusive as da esfera da segurança pública e da aplicação da lei e da ordem, o que significa renovar lideranças, criar uma polícia mais profissionalizada, com uma ação regulada legalmente". No caso do Brasil, continua ele, "essa área de segurança pública ficou presa a tradições corporativas", fazendo com que a polícia "continue se imaginando como força capaz de impor a ordem a qualquer custo, inclusive com o uso da força letal, que só deve ser usada em última circunstância".

Para Samira Bueno, a transição "não teve coragem de enfrentar todas as mazelas" brasileiras. "Não alteramos os organismos e suas culturas organizacionais. Os mesmos delegados e coronéis da polícias militares continuaram trabalhando. E do dia para a noite dissemos 'olha, você vai deixar de ser o braço armado do Estado, que persegue dissidente político, para garantir a ordem pública e preservar os direitos da população'. É uma transição muito mal feita", explica ela, que também é doutora em Administração Pública pela FGV. A especialista entrevistou para a sua tese de doutorado policiais da Rota paulista presos por homicídio. E constatou que todos eles, que carregavam nas costas dezenas de autos de resistência, acreditavam "estar fazendo um bem maior para a sociedade".

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Bueno lembra ainda que a época da transição democrática ficou marcada também por crises econômicas que reforçavam desigualdades, forçavam a migração em massa de pessoas para grandes cidades e geravam crescimentos urbanos desordenados, resultando em uma maior segregação social e também em um crescimento da violência urbana. "A Polícia Militar como a conhecemos data de 1970 e é resultado da junção da Guarda Civil com a Força Pública, com um padrão de trabalho extremamente truculento e que passa a se dedicar ao dia a dia dessa criminalidade".

Democracia x Estado de Direito

Tudo isso significa que, na prática, a democracia no Brasil não se tornou realidade? A cientista política e social San Romanelli Assumpção, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, discorda. "Na contramão dos discursos militantes, acho que o problema central não é de democracia", avalia. Ela argumenta que, apesar de o Brasil não ter lidado com seu legado de violações cometidas pelo Estado, conseguiu parar com a repressão política ditatorial, com a criminalização de credo político e de liberdades de expressão. "Se o conceito de democracia deixar de ser um sistema político eleitoral representativo e começar a ser o número de assassinatos cometidos pelo Estado, então vamos dizer que de 1964 a 1985 éramos mais democráticos, já que nesse período matávamos menos. Acho isso muito problemático", acrescenta. É graças a democracia, lembra ela, que "a periferia ganhou mais meios materiais e educacionais para levantar a voz".

Qual é o problema então? "Precisamos dizer que nossa democracia não conseguiu resolver um problema de Estado de Direito, um problema de violação de liberdades civis e de segurança pessoal, que é o direito à vida e a integridade física", pontualiza. "O que fazemos hoje como país é assassinato em massa, em escala numérica de crime contra a humanidade, números de países em guerra civil, e que não atinge a sociedade de maneira aleatória. Atinge sobretudo homens negros e periféricos", completa. Em 2017, mais de 75,5% das vítimas de homicídio eram jovens e negros, segundo o Atlas da Violência do IPEA. Entre 2007 e 2017, a taxa de pessoas negras mortas subiu 33%. A mortalidade de não negros subiu apenas 3,3%.

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