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Elitização do futebol
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

A gentrificação do futebol explica os estádios vazios

Ingressos caros e arquibancadas em silêncio refletem a cruzada da Conmebol para higienizar o futebol sul-americano com público elitizado

Jogo entre Peru e Venezuela teve o menor público da Copa América até aqui.
Jogo entre Peru e Venezuela teve o menor público da Copa América até aqui.Diego Vara (Reuters)

O som oficial desta Copa América não é o dos bumbos, batuques ou tambores, muito menos dos cânticos de torcida. O som oficial desta Copa América é o silêncio que paira sobre estádios vazios de alma. Em alguns momentos da estreia do Brasil contra a Bolívia, no Morumbi, o público que rendeu faturamento recorde à Conmebol parecia apreciar qualquer coisa. Uma orquestra sinfônica, uma peça de teatro ou, talvez, um rali de tênis. Qualquer coisa, menos uma partida de futebol. Com exceção dos gols, a reação mais contundente da plateia foi uma vaia à seleção na saída para o intervalo. Daniel Alves descreveu bem a sensação em campo. Os jogadores podiam ouvir cada instrução de Tite do banco de reservas, como se estivessem num treinamento.

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Silêncio, no futebol, significa indiferença. E isso diz mais que as arenas esvaziadas na edição brasileira da Copa América. Até agora, em cinco jogos, a média de 25.000 torcedores por jogo tem feito duelos entre seleções parecerem pelejas de campeonatos estaduais. No empate entre Peru e Venezuela, em Porto Alegre, apenas 11.000 pessoas compareceram à Arena do Grêmio, número cinco vezes menor que a capacidade do estádio. No entanto, o público deve aumentar ao longo da competição, especialmente nas fases finais, assegurando, assim, que esta edição não destoe da média histórica de comparecimento do torneio.

Na verdade, tamanho de torcida no estádio pouco importa para a Conmebol. A cifra que realmente lhe interessa é a do dinheiro. Na abertura em São Paulo, a organização da Copa América divulgou arrecadação de 22 milhões de reais com o público de 46.000 torcedores, novo recorde de bilheteria do futebol brasileiro. Se a média de 5 milhões de renda por jogo for mantida, ao final da competição a confederação sul-americana terá amealhado 130 milhões de reais, fora cotas de patrocínio e direitos de transmissão, que costumam responder pela maior fatia do bolo.

Embora o presidente Alejandro Domínguez se mostre preocupado com ingressos encalhados, os estádios vazios estão em linha com a agenda de higienização social do futebol executada pelos dirigentes da entidade nos últimos anos. Em 2007, na Copa América da Venezuela, quando a economia do país ainda estava longe de entrar em colapso, os ingressos mais baratos para assistir à fase final do torneio custavam menos de 10 dólares. Pouco mais de uma década depois, as entradas “populares” dos jogos de menor apelo saem pelo triplo do valor, em que pese a estagnação econômica no Brasil e vizinhos como a Argentina, sem contar a crise crônica dos venezuelanos.

A Conmebol não está apartada dessa realidade. Ao inflacionar os ingressos, tem plena consciência de que sua política de preços implica na exclusão de boa da população em todo o continente. A baixa procura por ingressos, que não é inédita na história da competição, deve ser interpretada sob uma perspectiva mais ampla. Elitizar o espetáculo é um posicionamento estratégico repleto de atitudes simbólicas. Em 2016, a confederação levou a edição centenária da Copa América para os Estados Unidos. Em 2017, chancelou a final em jogo único para a Libertadores e Sul-Americana. No ano passado, em resposta aos violentos incidentes antes do clássico entre Boca Juniors e River Plate, transferiu a partida mais valiosa de seu principal torneio de clubes para Madri.

Trata-se de um movimento com propósito bem claro: afastar do futebol o torcedor que não pode pagar. Para isso, a estética também precisa ser redesenhada para acomodar o novo público alvo. Protocolo para que os times entrem juntos em campo, mensagens de paz, logotipos e mascotes estilizados, comida gourmetizada, estádios padronizados e policiais mobilizados para reprimir torcedores organizados. A engrenagem desemboca na imposição de torcida única, o que, para os clubes geridos como se fossem empresas controladas por acionistas, não deixa de ser um negócio lucrativo. Rivais longe de seus domínios se convertem em mais espaço para camarotes e áreas VIPs, rentáveis ainda que permaneçam vazios durante a maioria dos jogos.

O futebol sul-americano assinou sua sentença de morte quando decidiu transformar torcedores em clientes, replicando fórmulas importadas da Europa sem levar em consideração as singularidades que sempre distinguiram nossa cultura de arquibancada. Representando entidades manchadas por escândalos de corrupção, como AFA, CBF e a própria Conmebol, cartolas compraram a ideia equivocada de que alijar os pobres acabará com a violência nos estádios, como se o ato violento de tornar proibitiva a paixão justificasse o experimento.

Está em curso um profundo e calculado processo de gentrificação patrocinado pela indústria do entretenimento, que a atmosfera fúnebre dos jogos da Copa América já não consegue disfarçar. O foguetório, os buzinaços, o ritmo dos instrumentos e a devoção incondicional que só consegue ser contida pela garganta sem voz estão com os dias contados. Ao fim, é capaz de ignorarem o minuto de silêncio para cumprir o protocolo.

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