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A desigualdade no cinema expressa pela matemática

Estudo com 2,4 milhões de atores revela que 70% têm só um papel. Para mulheres, é pior

Miguel Ángel Criado
Charles Chaplin e Jackie Coogan estão entre a minoria de atores que aparecem em mais de 100 filmes.
Charles Chaplin e Jackie Coogan estão entre a minoria de atores que aparecem em mais de 100 filmes.James Willis Sayre/Wikimedia Commons

O cinema deve ser um dos trabalhos mais desiguais e injustos que existem: a imensa maioria dos atores só conseguiu um papel na vida. O melhor momento da carreira tende a acontecer no início. Além disso, é um trabalho feito em fases, alternando boas e ruins. E alguns poucos monopolizam os créditos. Estes são alguns dos resultados da análise matemática de um banco de dados com 2,4 milhões de atores. E, é claro, para as atrizes, todos os padrões observados são ainda piores.

A desigualdade entre atores e atrizes já aparece no desenho do estudo, mas os autores, matemáticos da Queen Mary University, em Londres (QMUL), não têm culpa. Sua pesquisa fez um perfil de todos os intérpretes com pelo menos um papel registrado no Internet Movie Database (IMDb). E lá, desde o início do cinema com o curta-metragem “Cena do Jardim de Roundhay”, de 1888, até 2016, aparece quase o dobro de atores em relação às atrizes, 1.512.472 homens e 896.029 mulheres.

A matemática de um banco de dados tão grande produz resultados impressionantes. Cerca de 69% dos atores e 68% das atrizes tiveram uma carreira muito curta: terminou no mesmo ano em que começou, com um único papel. No extremo oposto estão os 5.146 intérpretes masculinos (0,0034% do total) com 100 ou mais filmes. Aqui aparecem grandes atores como Christopher Lee, com 288 créditos e 202 filmes (a diferença se explica porque o banco de dados computa separadamente episódios de séries de televisão). É seguido de perto pelo espanhol Fernando Rey, com 244 créditos. A porcentagem cai para 0,0022% no caso das mulheres.

A pesquisa, publicada na revista Nature Communications, relaciona essa distribuição tão desigual dos papéis disponíveis com um fenômeno conhecido como efeito Mateus, baseado em um versículo do evangelista, que diz que a riqueza atrai mais riqueza e pobreza, mais pobreza. Na indústria cinematográfica, o agente causal seria a predisposição dos produtores a contratar atores já famosos e mais populares. Mas esse efeito, já observado em outras áreas, implica que o sucesso de um ator pode depender mais de circunstâncias externas do que de seus dotes como intérprete.

“Isso não significa que aqueles que estão ali não sejam bons, significa que estão ali não apenas por serem bons”, diz o pesquisador em sistemas complexos da universidade britânica e coautor do estudo, Lucas Lacasa. Ou seja, o cinema não é um sistema baseado na meritocracia, existem elementos alheios, que operam de forma independente dos próprios atores. “Existem outros fatores, como a sorte, mas se você trabalhou antes, trabalhará mais depois”, acrescenta Lacasa. Há exceções que permitem o surgimento de novas figuras, mas o cenário dominante é uma desigualdade que se retroalimenta.

As fases, tanto as boas quanto as ruins, estão relacionadas com esse fenômeno. Pode parecer irracional e até absurdo, mas é o que os dados dizem. As interpretações tendem a estar agrupadas, com intervalos de inatividade. Depois de uma boa fase, a maioria dos intérpretes com carreiras longas passa anos sem atuar até que o telefone toque novamente.

No ano passado, a Nature já tinha publicado um estudo sobre as fases. Com base nas carreiras de cerca de 30.000 artistas, diretores de cinema e cientistas, os autores comprovaram como sua criatividade não se distribuía uniformemente ao longo do tempo, mas agrupada em fases ruins e boas. “Foi algo impressionante, já que sabíamos por uma pesquisa anterior, que publicamos na revista Science, que as melhores obras são produzidas de forma aleatória dentro da sequência de trabalhos, o que sugeriria que a criatividade aparecia distribuída ao acaso ao longo de uma carreira. Razão pela qual deveríamos pensar que não existe algo como as fases boas”, explica Dashun Wang, diretor do Instituto Northwestern de Sistemas Complexos (EUA). Não ligado à atual pesquisa sobre os atores, Wang acrescenta: “No entanto, em nosso último trabalho constatamos que são as boas fases o que se produz aleatoriamente, mas que uma vez que você a tem, é aí quando tende a criar suas melhores obras”.

Mas nas fases se reproduz o viés de gênero: “todos têm fases ruins, mas elas acabam mais cedo para os atores e são mais curtas”, comenta Lacasa. As atrizes têm fases boas e são mais curtas. A desigualdade também ocorre no auge da carreira. Naquelas que duram mais de 20 anos, as atrizes tendem a atingir o auge em seus primeiros anos, enquanto que nos atores sua distribuição, ainda dividida em fases, é mais uniforme.

“Nossos resultados lançam luz sobre as dinâmicas sociais subjacentes no mundo do entretenimento e levantam questões sobre a pureza do sistema”, diz Oliver Williams, coautor do estudo, também da QMUL, em um comunicado.

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