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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O líder e eu (e ninguém no meio)

O mesmo fenômeno que acaba com as lojas, os cinemas e as agências de viagem afeta a política – e nos leva ao cesarismo e à frivolidade

Ricardo de Querol
Roberta Vázquez

Um dos tantos fenômenos imparáveis trazidos pela revolução digital se chama desintermediação. É o que nos leva a reservar voos e hotéis sem passar por uma agência de viagens, e a ter conta corrente sem pisar numa agência bancária. É o que permite que marcas vendam roupas na Internet sem precisar de loja alguma, e que a Netflix produza cinema sem projetá-lo em salas de cinema. A desintermediação poupa custos e incomodidades a empresas e usuários, claro, mas deixa vítimas evidentes: as agências de viagem, as agências bancárias, as lojas de roupa, as salas de cinema. O cliente sempre tem razão. Nos Estados Unidos, soam os alarmas pela velocidade com que fecham os centros comerciais, que em muitos lugares são o verdadeiro centro, a praça das pequenas cidades que não têm forma de cidade, e sim de urbanizações espalhadas entre as rodovias.

Temos um consumo sem intermediários. Mas podemos ter uma democracia sem intermediários? Uma democracia em que o líder diz que só responde ante o povo, sem estruturas como os aparatos dos partidos? Onde o líder se comunica com seus seguidores diretamente, evitando o jornalismo profissional? O mundo digital (embora não só ele) debilitou os establishments político e midiático. É o que Steven Levitsky chama de “democratização das democracias”: antes, os partidos controlavam as candidaturas, e a informação fluía por diversos veículos. Ambas as estruturas tendiam à moderação: competiam para seduzir o cidadão comum.

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Hoje, estamos fragmentados e polarizados. Emerge um novo cesarismo. Dirigentes estridentes assumem o controle de partidos velhos, forçados a seguir suas ideias inesperadas, ou criam partidos mais personalistas que os de antes. Como são eleitos nas primárias (nos países com essa regra partidária), não acham que devem nada a ninguém em seu partido, nem se sentem obrigados a integrar suas correntes. Como desprezam os meios de comunicação, não se submetem a coletivas nem a entrevistas incômodas. Em vez disso, comunicam-se pelo Twitter ou fazem circular suas mensagens (quando não notícias falsas) pelo WhatsApp.

Nas redes sociais, manda a mensagem simples (e unidirecional, claro). A política compete ali com o entretenimento, mimetizando-se com ele. Numa democracia sem intermediários, numa sociedade hiperdigitalizada, na política do espetáculo, somos cidadãos ou somos audiência? Eleitores ou followers? Um voto vale o mesmo que um like? Um meme vale o mesmo que um programa político? Existem mais vozes, mas há mais diálogo?

A ágora era uma praça de verdade, uma esplanada onde os antigos gregos se reuniam para debater os assuntos públicos da cidade. Ali nasceu a democracia. Que não aconteça com a ágora o que aconteceu com os centros comerciais presos entre as rodovias. Experimentamos coisas, temos que fazer isso, mas não encontramos nada melhor que a velha invenção dos gregos. E nem antes nem agora estamos a salvo dos demagogos.

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