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O silêncio dos militares separa Lia de sua história

Tudo aponta que ela foi uma criança retirada de guerrilheiros que combatiam a ditadura e entregue para adoção pelos militares. "Tenho direito de saber quem era minha mãe. Eles não pretendem colaborar, e eu preciso viver com essa frustração"

Sandra Castro, irmã do guerrilheiro Raul, com a possível sobrinha, Lia Martins.
Sandra Castro, irmã do guerrilheiro Raul, com a possível sobrinha, Lia Martins.Arquivo pessoal
Beatriz Jucá
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Desde que era criança, o que Lia Martins sabe sobre a própria história são fragmentos. Aos 45 anos de idade, ela ainda tenta compreender uma narrativa sobre si mesma que simplesmente não fecha. Lia cresceu no Pará consciente de que havia sido adotada pela família que a educou — e cujos nomes prefere preservar. O que sabia sobre sua origem eram retalhos contados aos poucos pelo pai adotivo e por um tio. Eles diziam que ela havia sido entregue com pouco tempo de vida por um delegado e um soldado no Lar de Maria, um semi-internato espírita de Belém do Pará que era dirigido por um integrante da Aeronáutica durante a ditadura militar. O diretor na época até teria tentado explicar às autoridades que não podia receber aquela criança muito branca e com o corpo tomado por picadas de mosquitos porque não havia estrutura adequada, mas os militares contaram que a criança havia sido resgatada de um sequestro em Goiás, e lhe prometeram enviar dinheiro. Além de prometer que voltariam para visitá-la depois. Nunca cumpriram.

Os pais receberam o registro de nascimento de Lia pelo correio. Nos documentos, aos quais o EL PAÍS teve acesso, consta que ela é filha legítima dos pais que a adotaram e que o pai dela estava presente na ocasião do registro, embora ele nunca tenha ido ao cartório de Bragança, a 213 quilômetros da capital Belém. Daí em diante, só há lacunas. A única solidez, ela conta, é o apreço enorme que tem pelos que a acolheram. Ela conta que teve amor e tudo que precisava, pôde estudar — hoje é formada em relações públicas. Passou muito tempo sem buscar nada sobre seu passado  até que apareceu nos jornais em 2009 uma história sobre a Guerrilha do Araguaia e a saga de uma mulher em busca de um irmão desaparecido e de seus possúveis descendentes. A reportagem mencionava uma criança de paradeiro incerto e a irmã de Lia achou que a trajetória era muito parecida com a dela. Foi aí que se cruzaram os destinos de Lia e de Mercês de Castro.

A cerca de 700 quilômetros da casa onde Lia morava em Belém, nos anos 2000, Mercês Castro navegava pelo rio Araguaia, próximo à cidade de Xambioá, em uma das várias expedições que fazia por conta própria na região. Ela buscava os restos mortais do irmão Antônio Teodoro de Castro, desaparecido durante a repressão à guerrilha que chegou a reunir cerca de 80 combatentes. Vindos de diferentes partes do Brasil, militantes como Teodoro adentraram a floresta entre 1969 e 1974 com o plano de implantar um levante popular de inspiração comunista chinesa e derrotar a ditadura. Da segunda fase de combate à guerrilha, não houve sobreviventes. Sobre o macabro saldo de desaparecidos sabe-se por depoimentos pontuais que foram exterminados, mas ainda paira o silêncio oficial dos comandantes do Exército sobre a operação e o que foi feito dos corpos —um silêncio que, de muitas formas, se impõe até hoje.

Cartaz com os desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia.
Cartaz com os desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia.

Em busca dessas respostas, Mercês andava com uma foto do irmão e perguntava a quem cruzasse seu caminho se alguém ali o conheceu. Um homem que ela abordou então lhe contou que, dentre as vítimas da guerrilha, as crianças sequestradas pelos militares eram as que lhe davam mais pena. E afirmou que, dentre os filhos dos guerrilheiros que ele conheceu, a que achava mais bonita era a filha de Teodoro, conhecido na guerrilha como Raul. Era uma bebê de pele muito clara, mas que estava com o corpo infestado por picadas de mosquitos na última vez que a viu. Mercês tentou fazer mais perguntas, mas o homem se assustou e pulou da balsa onde estavam sem se identificar. Antes de ir, falou apenas que o mateiro José Maria Alves da Silva era quem poderia contar melhor a história sobre as crianças que foram tiradas dos guerrilheiros.

Conhecido na região como Zé Catingueiro, José Maria Alves da Silva havia atuado na guerrilha como guia dos militares na floresta amazônica. Mercês conseguiu encontrá-lo anos depois, em uma expedição com outros familiares dos 61 guerrilheiros que desapareceram na região.

— Catingueiro, tu conheceu o Raul? —, perguntou a irmã do guerrilheiro.

— Conheci.

— Ele teve uma filha?

— Teve. Uma menina bem branquinha.

— O Raul tinha alguma marca?

— Tinha uma aqui [ele apontou para o tronco].

A resposta do mateiro deu a certeza que Mercês buscava. Teodoro tinha uma cicatriz no tronco por uma cirurgia que havia feito anos antes nos pulmões, um tratamento experimental para a tuberculose que o acometia. Foi essa a história que foi parar nos jornais em 2009. Instada pela irmã, Lia buscou entrou em contato com Mercês. Ela enviou uma foto da mulher aos irmãos e todos ficaram impactados pela semelhança de Lia com os membros da família. Era preciso, no entanto, um exame de DNA para comprovar o parentesco. Lia não aceitou fazê-lo de imediato. "Na época que descobri, em junho de 2009, meu pai adotivo era vivo e estava com câncer. Não falei nada porque ele tinha muito medo que eu o deixasse", conta. Meses depois, o pai faleceu, e Lia sentiu que estava pronta para buscar a sua história biológica.

"Até hoje eu me pergunto: nossa, será que isso é mesmo verdade? Eu sabia da guerrilha porque tinha lido sobre ela, mas nunca imaginei que era parte dessa história"

Ela fez o primeiro teste de DNA, pago pelos familiares de Teodoro, comparando o seu material genético aos dos tios paternos. O resultado foi 90% de chance de parentesco. Lia então decidiu conhecê-los melhor. Com o apoio dos irmãos adotivos, deixou o Pará e viajou pelas várias cidades — Fortaleza, Brasília e Curitiba— onde seus oito tios estavam morando. Passava de semanas a meses na casa de cada um deles, em uma tentativa de se conectar com uma família com a qual nunca havia convivido. Nas histórias que ouviu deles, mergulhou em uma jornada pelas convicções do pai guerrilheiro, o que lhe deu um novo olhar sobre o movimento daqueles militantes. "Eu tenho orgulho e admiro o que ele fez porque eles tinham uma visão de liberdade, uma missão. Era utópica? Sim, mas eles foram atrás do que acreditaram", diz. E se consola que, apesar dos conflitos armados, da violência e de toda a tragédia que acometeu o Araguaia, o pai guerrilheiro encontrou o amor. "A prova desse amor sou eu", acredita.

Há dez anos, ela tenta recuperar os laços com o pai biológico por meio dos tios. Está sempre em contato por telefone e redes sociais com cada um deles. A relação afetiva foi restaurada, mas a dúvida se ela pertence biologicamente àquela família ainda ronda a todos. "Até hoje eu me pergunto: nossa, será que isso é mesmo verdade? Eu sabia da guerrilha porque tinha lido sobre ela, mas nunca imaginei que era parte dessa história", diz.

Lia Martins e Mercês Castro, durante a viagem que ela fez para conhecer a família de Teodoro.
Lia Martins e Mercês Castro, durante a viagem que ela fez para conhecer a família de Teodoro.Arquivo Pessoal

Os esforços que vieram depois para encontrar suas raízes vieram por meio da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que foi instituída por lei em 2011 e aprovada pelo Congresso. Funcionou entre 2012 e 2014 e até hoje segue sendo um objeto constante dos ataques do presidente Jair Bolsonaro. Foi por meio da CNV que Lia fez um novo DNA em 2014. Ela era a única criança possivelmente nascida na Guerrilha do Araguaia que havia sido reclamada pela família à comissão, ainda que o livro Cativeiro Sem Fim, do jornalista Eduardo Reina, estime que existem pelo menos oito casos de filhos sequestrados pelos militares durante a guerrilha.

O novo exame feito por Lia deu inconclusivo pelo mesmo motivo do primeiro: a ausência do material genético da mãe. O laudo também confirma as elevadas chances dela ser filha biológica de Antônio Teodoro de Castro. A família de Teodoro chegou a pedir ao Governo no mesmo ano que novos exames fossem feitos cruzando o DNA das guerrilheiras para ver se alguma delas poderia ser a mãe de Lia. Com o material genético materno, seria possível confirmar de vez a paternidade de Raul. Para isso, porém, era preciso a autorização dos familiares, um processo que chegou a ser iniciado, mas os testes não foram realizados. A CNV foi encerrada naquele 2014, e seu relatório final destaca apenas a necessidade do Estado "empreender esforços no sentido de confirmar a identidade da filha que Antônio Teodoro teria tido na região, investigando as circunstâncias nas quais ela teria sido separada de sua família". Até agora, o Estado deu poucas respostas à família.

Mercês sustenta sua crença de que pode ter encontrado a sobrinha também em uma conversa que teve com o militar João Lucena, que havia participado da repressão no Araguaia, e da investigação que fez com base no que ele lhe contou. João Lucena confirmou que Teodoro havia tido uma filha no Araguaia, que foi levada pelos militares. Em depoimento à CNV em 2004, o segundo-tenente da Polícia Militar de Goiás, João Alves de Souza, também confirmou essas informações, que constam no relatório final do colegiado. Mercês resume: "Eu vou te dizer o que eu acredito hoje: se a Lia não é filha do meu irmão, é de algum guerrilheiro, eu só não sei qual".

Sem o DNA da mãe, é muito difícil conseguir confirmar oficialmente que Lia Martins é filha de Antônio Teodoro de Castro. Tudo o que Lia sabe sobre ela é o que os camponeses contaram às suas tias nas expedições ao Araguaia. Era uma mulher baixa, de cabelo curto e estrangeira que pouco falava português. Era também uma guerrilheira, e o próprio Teodoro teria feito o parto da filha. O casal teria se separado para protegê-la, mas os militares a capturaram e a levaram para a base de Araguaína. A partir daí, a história da suposta mãe de Lia ainda é um mistério. Esse relato, porém, não consta nos documentos oficiais da CNV. "É uma coisa que não se pode provar, porque o que sabemos é o que as pessoas de lá falam. A lacuna nunca fecha", segue Mercês.

Depoimento de Lia Martins registrado em cartório.
Depoimento de Lia Martins registrado em cartório.Arquivo Pessoal

Já Lia segue frustrada por não conseguir fechar a própria história. Quer saber quem é a sua mãe, o que aconteceu com ela e porquê sua família foi separada. Mas sempre que tenta reconstrui-la esbarra no silêncio imposto sobre o Araguaia pelos militares. Muitos deles, de forma pontual, já admitiram torturas, abusos e até assassinatos. Antes mesmo da CNV, um agente confessou ter matado Teodoro e foi denunciado pela procuradoria. Mas tudo acaba esbarrando na resistência do comando militar em fornecer documentação e na Lei da Anistia, que completa 40 anos neste agosto e segue sendo reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, apesar das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que instam o Estado brasileiro fazer o contrário. Em 2010, num caso sobre o Araguaia, a CIDH impôs ao Brasil "o dever de garantir acesso facilitado a toda e qualquer informação" que possa contribuir para conhecer os crimes. Tudo em vão. "Tenho direito de saber quem era minha mãe. Se eu tenho outros parentes. Do meu pai, sou a única filha. Mas e dela? Tenho avós? Primos? Tios vivos? Eles [os militares] não pretendem colaborar, e eu preciso viver com essa frustração."

Material que Mercês costuma levar nas expedições em busca dos desaparecidos do Araguaia.
Material que Mercês costuma levar nas expedições em busca dos desaparecidos do Araguaia.

Bolsonaro põe ex-militares e nome do PSL em comissão que busca mortos e desaparecidos

Bolsonaro e sua ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, substituíram nesta semana quatro dos sete membros da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, um colegiado criado em 2005 e que tem sido central na investigação das violações de direitos humanos durante a ditadura brasileira. “Agora é Jair Bolsonaro, de direita, ponto final. Quando eles botavam terrorista lá, ninguém falava nada. Agora mudou o presidente”, disse Bolsonaro, um defensor contumaz da ditadura e que sempre desprezou o trabalho do órgão ("quem gosta de osso é cachorro", disse, causando ultraje, há alguns anos).

Marco Vinicius Pereira de Carvalho, assessor especial de Damares e filiado ao PSL de Bolsonaro, será o presidente da comissão no lugar da procuradora Eugênia Augusta Gonzaga Fávero. Weslei Antônio Maretti, coronel da reserva do Exército, terá o lugar que era de Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada e professora universitária, que integrou a CNV.

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