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Temporada final de ‘Game of Thrones’
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Normal que a Khaleesi precise de um ‘latte’

Depois de lutar toda a série pelo trono de ferro, a Mãe dos Dragões acaba praticamente com a coroa. A personagem não merece ser descartada com um “oh, ela ficou histérica, que chata”

Daenerys, enfurecida, no quarto capítulo da oitava temporada de ‘Game of Thrones’. Em vídeo, trailer do quarto episódio da oitava temporada.
Patricia Gosálvez

A cena ficou famosa porque em um plano apareceu um copo da Starbucks. Aconteceu no quarto capítulo da oitava temporada, o último a ir ao ar: os humanos estão comemorando a vitória sobre os Caminhantes Brancos, o fim da grande noite. Os senhores, com tapinhas nas costas, bebidas que escapam pela comissura dos lábios, rugem: “Grande Jon!, montou em uma porra [sic] de um dragão e lutou, merece ser Rei, que colhões! [não sic]!”. Efetivamente, Jon montou em um dragão por um momento antes de cair e ser salvo primeiro pela namorada e depois pela irmã. De longe, a namorada, Daenerys, olha os barbudos com tristeza infinita. Sério? Ela luta sobre o dorso do **** dragão há seis temporadas. Jon sorri para ela como quem diz “você já sabe, boys will be boys, querida, para que vou dizer alguma coisa e acabar com as expectativas deles”. Normal que Daenerys precise de um latte com uma porção dupla de creme e bastante açúcar para devolver-lhe o sorriso mais amargo.

Antes do café, Daenerys achou pertinente brindar por Arya, a garota que resolveu o apocalipse matando o rei zumbi com sua espadinha, porque é importante dizer certas coisas bem alto para que sejam ouvidas entre tantos tapinhas nas costas. Além de salvar o mundo, Arya salvou Jon, que na mesma noite havia salvado Daenerys quando ele se colocou diante do Rei da Noite com sua espadona com cara de “olha que eu vou” e o zumbi respondeu: “aonde você vai, garoto?”. Jon sempre foi salvo por mulheres, Daenerys, Arya, Sansa, Melisandre, facilitadoras da sobrevivência e da fortaleza do herói. Então, sim, em vez de tantos tapinhas nas costas, um aplauso para a garota aplicada que passou metade da vida prestando concurso para heroína. Se tivessem prestado mais atenção nela, talvez evitassem uma montanha de mortos. Mas só Gendry estava prestando atenção nela, embora não muito, já que imediatamente considera normal pedi-la em casamento, claro, rapaz, o que Arya precisa é justamente de um marido, está no papo.

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Depois do café, Daenerys implora a Jon para não contar que ele também é o herdeiro do trono que ela considera seu, pois trabalhou para isso. Mas, opa, Jon não demora nada para contar às suas irmãs. As megeras serão elas que espalharam a palavra, porque ele não, o bom e velho Jon, como pode ser um traidor se ele não quer reinar, explicam os espertos Tyrion e Varys, no caso de você não ter entendido. Ele é todo amor e honradez, renuncia a tudo, exceto renunciar a contar o segredo que acabará com a grande aliança.

Desvendada a trama, cometido o equívoco, o mais sensato parece, como observa Tyrion, que Jon e Daenerys se casem, gerem um filho-pacto e Jon exerça de consorte, que é o que sempre foi, um frouxo. Mas por razões um pouco vagas, que soam a deus ex machina, os roteiristas descartam (ou adiam, oxalá) essa possibilidade em que ganhariam “todes”.

Em vez disso, na última cena, temos Daenerys, a Louca, um recurso para que Jon pareça melhor. Perdão, Khaleesi montou em dragões, libertou cidades, rompeu correntes, pensou estratégias, ouviu opiniões de seus inimigos naturais, subverteu normas. Trabalhou a revolução sem desalinhar a trança. Por currículo não será – no entanto, é essa última cena –, seu rosto transtornado pela ira que a reduzirá a um estereótipo. “Perdeu o juízo”, comentam. “Não administra a ambição.” “A garota não está preparada”, reviravolta inesperada, “melhor tirá-la do caminho”. Mas veja bem, um dia ruim qualquer um tem, e ela ficou órfã de outro filho dragão, do seu benfeitor Jorah, acabam de decapitar sua melhor amiga, está rodeada de traidores... Está sozinha e furiosa, é lógico. Só lhe falta que venha um homem para lhe dizer: “fique calma, mulher”.

A personagem não merece um final assim, vítima de si mesma, descartada com um “oh, ela ficou histérica, que chata”. Seu incêndio interior é o que há de melhor, o mais verdadeiro, do pior capítulo da oitava temporada de Game of Thrones. Um episódio de transição que nos deixou com uma Khaleesi praticamente no trono. Parece que sua ira servirá de desculpa para que, opa, o tonto a destrone. Que vontade que Cersei acabe com todos, de verdade.

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