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Uma campanha interminável na Espanha

Ao contrário do que acontece em outros países, o inimigo espanhol não é externo. A Catalunha, e ultimamente a Espanha, vivem em estado de exaltação nacional permanente

Claudi Pérez
O primeiro-ministro Pedro Sánchez, com Susana Díaz (à esquerda) e a ministra da Fazenda, María Jesús Montero, em um comício eleitoral em Dos Hermanas (Sevilha).
O primeiro-ministro Pedro Sánchez, com Susana Díaz (à esquerda) e a ministra da Fazenda, María Jesús Montero, em um comício eleitoral em Dos Hermanas (Sevilha).Jose Manuel Vidal (EFE)

A política é uma disciplina narrativa: não é coincidência que o parlamentarismo moderno seja contemporâneo de Shakespeare e Cervantes. Recentemente, foram encontrados no mundo evidências de uma nova espécie humana, foi fotografado pela primeira vez um buraco negro, desprendeu-se um pedaço da fachada da sede do Partido Popular (PP) – a tentação da metáfora – e o primeiro-ministro (presidente do Governo espanhol) Pedro Sánchez aceitou enfim sair de sua torre de marfim para debater com os demais candidatos, incluindo Santiago Abascal, e dar início a corrida eleitoral no país, que terá eleições gerais no dia 28 de abril.

O debate foi na Atresmedia, do grupo que acaba de publicar um livro do primeiro-ministro. A campanha interminável começou, enfim, em 12 de abril, de sobressalto em sobressalto – e depois de quase cinco anos de pré-campanha –, e as histórias ganham velocidade. Sánchez se perfila sem rubor na direção do vazio deixado pelo PP e o Cidadãos no centro; o Podemos tenta tirar proveito do Watergate de Rajoy (uma polícia patriótica para esmagar o partido de Pablo Iglesias), e os demais estão em uma confusão geral em que o Vox define a agenda, que costuma irromper pela Catalunha.

"Sánchez não dá as caras porque tem que dar indultos em troca de assentos [do Parlamento]; se ele puder pactuará a independência com Torra", disse Pablo Casado (no dia 11), apesar do anúncio do debate, nesse labirinto em forma de teia de aranha que sempre conduz à Catalunha.

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Pedro Sánchez foi nomeado pelo Parlamento espanhol como substituto do premiê conservador, Mariano Rajoy, do Partido Popular (PP), em junho de 2018. Na época, o líder socialista conseguiu reunir apoios de diferentes partidos de esquerda até então inimizados, e especialmente dos nacionalistas, inimigos históricos do PP, para uma moção de censura, que acabou por destituir o conservador. Porém, apenas oito meses e meio após assumir o cargo, Sánchez teve que convocar novas eleições por conta da rejeição dos independentistas catalães, os mesmos que foram cruciais para levá-lo ao poder, aos Orçamentos Gerais.

“Um Governo tem a obrigação de cumprir sua tarefa: aprovar leis, governar, avançar. Quando alguns partidos bloqueiam a tomada de decisões, é preciso convocar eleições”, declarou Sánchez na época no palácio de La Moncloa, sede do Poder Executivo em Madri, como conclusão de um longo discurso no qual criticou “a crispação” e defendeu o diálogo com os independentistas, “sempre dentro da Constituição”.

Porque esse era e é o tema de fundo: a Catalunha. Ao contrário do que acontece em outros países, aqui o inimigo não é externo: o PP de Casado e Aznar, o Cidadãos de Albert Rivera e certamente o Vox não hesitaram em se arranjar um bom inimigo – o separatismo – para polir sua estratégia. O julgamento dos líderes do procés está em marcha. Rajoy passou pelo Supremo. O Vox provocou brigas em Barcelona, os independentistas se manifestaram recentemente em Madri e no dia 11 Cayetana Álvarez de Toledo, do PP, foi vaiada na Universidade Autônoma de Barcelona. Não, a Espanha não é um país em chamas. Mas a política espanhola vai de incêndio em incêndio.

O Som e a Fúria: a Catalunha, e, finalmente, a Espanha, vivem em permanente estado de exaltação nacional, o que levou uma parte a cruzar todas as linhas vermelhas da desobediência e deslealdade institucional, e a outra a cair em uma espécie de fundamentalismo legal, na feliz expressão do escritor Jordi Gracia García. Um único dia é suficiente para forjar um drama em quatro atos: o líder da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), Oriol Junqueras, clamava pelo "diálogo"; ao mesmo tempo, seu partido e a antiga Convergência – Oh, Convergência – se recusavam a renunciar à via unilateral. Inés Arrimadas protagonizou o enésimo episódio de tensão, ao acusar os separatistas no Parlament de "se esquivarem dos ataques fascistas do independentismo nas sedes dos partidos constitucionalistas". E o indigno assédio a Álvarez de Toledo foi o toque final: o sétimo círculo da Divina Comédia é o dos violentos.

A pré-campanha teve início com um mistério (quanto vai custar ao PP abandonar o perfil de partido da ordem e da estabilidade?) e a campanha começou com outro enigma: Quão selvagem será o debate catalão. O PSOE se agarra ao perfil sem estridências de Sánchez, e por ora lhe cai bem. Mas a campanha pode se estraçalhar a qualquer momento: sempre acontece.

Passam-se os meses e o apoio ao separatismo não cede: se for para acreditar nas pesquisas (e as palavras condicionais costumam ser uma manobra de distração), o dia 28 de abril constatará a má saúde de ferro do secessionismo, com mais votos do que nunca nas eleições gerais. "Essa solidez não vai se desfazer enquanto durar o julgamento e os líderes continuarem na prisão: isso dá coesão ao separatismo e asas aos discursos incendiários do nacionalismo espanhol", argumenta o analista José Fernández-Albertos.

A política espanhola olhava para a Europa durante a Transição: o Estado do bem-estar social europeu era higiene, férias, anestesia, lâmpadas de leitura, laranjas no inverno. O movimento de independência tenta fazer algo semelhante. Os líderes catalães fizeram no dia 11 a enésima tentativa de aliar-se a Bruxelas, mas saíram escaldados: "Na Espanha os direitos democráticos são plenamente respeitados. Se a Catalunha tem um problema com a Constituição, tem o direito de lutar politicamente para mudá-la, mas não tem o direito de violá-la", retrucou o vice-presidente do bloco europeu, Frans Timmermans.

Os italianos não tiveram romance popular, mas tiveram a ópera: talvez por isso Berlusconi foi cantor de boleros e Matteo Salvini é uma espécie de guitarrista heavy metal. Começa a campanha e a política espanhola, apesar de sua tradição narrativa, se italianiza por alguns momentos e parece adequada à zarzuela. O libreto é dado pela questão catalã, transformada em tragicomédia com carácter circular e estrutura de pesadelo.

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