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Crônica
Texto informativo com interpretação

Nada lhes parecia impossível de mudar, com exceção das próprias convicções

Romance de estreia de Rodolfo Borges, 'Oprimidos: A ocupação da reitoria' aborda o cotidiano de uma universidade brasileira. O livro foi publicado de forma independente, pela Kindle Direct Publishing. Leia trecho

Alunos da Universidade de Brasília (UnB) ocupam a reitoria em protesto contra atrasos no pagamento de bolsa-auxílio estudantil em 2015.
Alunos da Universidade de Brasília (UnB) ocupam a reitoria em protesto contra atrasos no pagamento de bolsa-auxílio estudantil em 2015.Marcello Casal jr (Agência Brasil)
R. B.

Três cuecas extras, dois pacotes de biscoito recheado, escova e pasta de dentes dentro da mochila. Francisco estava pronto para tomar o prédio da reitoria. Ele não sabia exatamente como se comportar em um ambiente como aquele. Tentava não demonstrar nervosismo e, na verdade, torcia para que a ação fosse adiada. Talvez o clima não fosse o ideal para uma atividade como aquela… O tempo estava muito seco. Alguém podia passar mal. E se o reitor chamasse todo mundo para conversar e concordasse em expulsar os policiais do campus? Talvez fosse melhor tentar conversar de novo… Mas não havia nem clima para sugerir aquilo. Todos pareciam tranquilos. Satisfeitos. Empolgados. A ação era corriqueira e muitos ali já tinham participado de invasões antes. Além do mais, boa parte deles provavelmente já estava entorpecida. Não necessariamente por drogas, mas pelo estado de virtude e poder do qual Francisco sentiria o primeiro toque enquanto a pequena multidão se deslocava em direção à reitoria.

As dúvidas de Francisco em relação àquela aventura, que dificilmente agradaria a seus pais, se dissiparam no momento em que ele identificou Sara no meio da turma que devia contar 20 pessoas. Eles estavam descontraídos e as conversas nem sequer giravam em torno da invasão que estava prestes a ocorrer. Ele se preocupavam com muitas coisas ao mesmo tempo. Seus braços, naquele instante, só podiam alcançar a universidade, mas era como se quisessem segurar o mundo inteiro nas mãos e moldá-lo, como massa de modelar, à forma que lhes parecesse melhor. E não havia nada que eles acreditassem impossível de mudar, com a exceção óbvia de suas próprias convicções.

Naquela quarta-feira, Sara acordara perturbada por uma piada. Ela levava as piadas muito a sério. Mas Francisco não sabia disso ainda e, ao ouvir sua musa lamentar o fato de que um humorista contou uma piada sobre estupro em um programa de televisão a cabo na noite anterior, o calouro desdenhou.

“É só uma piada sem graça”, disse, tentando reduzir aquela brincadeira ao seu tamanho real. Ele estava convencido de que consolaria e protegeria Sara das garras cruéis do ofensivo piadista. Mas Francisco não recebeu um agradecimento em troca. Pelo contrário. Naquele olhar de estupefação que Sara lhe devolveu parecia se esvair todo o traje de gala de virtudes — em que o amor pelos pobres era o fraque, a defesa dos negros fazia as vezes de gravata, a celebração dos transgêneros era o colete e o feminismo caía como cartola — que o galanteador tinha se esforçado para vestir durante a última semana. Aquilo não era só uma piada, a menina explicava em fúria, mas um endosso à cultura do estupro. Apenas àquela piada, aliás, era possível atribuir diretamente cerca de 50% das dezenas de abusos sexuais cometidos por dia no país, Sara acrescentou.

“No momento em que se naturaliza uma violência como essa, o humorista assume a responsabilidade pelos atos cometidos por esses pervertidos. O humorista e todos aqueles que tentam relativizar esse tipo de piada têm parte da culpa. Sem falar que um humorista de verdade tem por dever mirar sempre contra o opressor, e nunca contra o oprimido”, finalizou Sara.

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Francisco nunca tinha imaginado que um humorista pudesse pensar em outra coisa além de fazer rir, mas não tinha alternativa senão concordar com a menina. O jovem pediu desculpas, disse que estava tentando ajudar, mas era tarde. O campo minado tinha muito mais explosivos do que o estudante apaixonado conseguia identificar àquela altura. O estrago estava feito e seria preciso se empenhar um pouco mais durante aquela ação na reitoria para reparar o erro. Foi com esse sentimento que Francisco partiu, em meio ao grupo que já contava cerca de 40 pessoas, algumas delas com os rostos cobertos por camisetas, rumo ao prédio da administração da universidade abastecidos por gritos de palavras de ordem. Francisco nunca tinha gritado tão alto.

O campus estava tranquilo naquele início de tarde. O campus era tranquilo. Era como se nada acontecesse por ali, a não ser quando alguém resolvia protestar ou fazer uma intervenção artística ou quando uma turma de calouros da agronomia era forçada a passar por um trote cuja brutalidade inevitavelmente ia parar nas páginas dos jornais e virava motivo para manifestos inflamados — seja porque um dos novatos coagidos a beber vodka sofreu um coma alcoólico e foi encontrado desmaiado em uma calçada nas imediações da universidade ou morto dentro da piscina do centro olímpico, ou ainda porque um vídeo que registrou as calouras rebolando numa disputa pelo respeito de seus veteranos desagradou um dos pais das envolvidas — ou quando uma festa não autorizada saía do controle dos organizadores e os custos pelos danos ao patrimônio público iam parar na planilha de orçamento da universidade para o próximo ano letivo, porque o dinheiro para reparos naquele período já tinha acabado. Naquele dia específico, o evento da universidade era o protesto contra a Polícia Militar, cujos representantes repetiam aos gritos lemas como “POLÍCIA, FASCISTA, NÃO PASSARÃO”, “VEM PRA RUA, VEM, CONTRA A PM”, “O POVO, UNIDO, JAMAIS SERÁ VENCIDO”, “QUEM NÃO PULA É FASCISTA” e “OCUPA, OCUPA, OCUPA E RESISTE” enquanto avançavam embalados pelas batidas de bumbos.

O clima era de festa e Francisco sentia enfim que aquilo era um tipo de diversão, um bom passatempo. Não a diversão gratuita e egoísta de um carnaval fora de época ou de um show de rock, mas a diversão produtiva, militante, correta, a diversão capaz de mudar o mundo. A inebriante e poderosa diversão que só a pureza juvenil pode proporcionar. Eles avançavam com uma força de que ninguém ali, naquele grupo, seria capaz de reunir sozinho. Eles não eram atletas. Não eram gênios. Boa parte deles não seria capaz de enumerar mais de duas qualidades de valor prático. Eles eram os párias, se preferir, mas estavam juntos, unidos, eram um corpo só, unificado por um objetivo comum. E, juntos, eles eram mais fortes do que a polícia, mais fortes de que a rocha, do que o escudo. Eles avançavam sem obstáculos, mas, se obstáculo houvesse, passariam por cima. Porque eles formavam uma massa homogênea. E porque estavam certos.

Em meio àquela poderosa multidão, Francisco desejou que Marcos Vinícius cruzasse o seu caminho. Desejou que seu inimigo estivesse do lado da polícia e tentasse impedir os manifestantes de chegar à reitoria. Assim, todos os anos de bullying e aquele apelido idiota poderiam ser exorcizados numa cerimônia solene de pisoteamento público. Infelizmente, Marcos Vinícius não seria pisoteado naquela tarde. Mas Francisco tinha provado a poder da massa. E gostou. Quem conseguisse controlar a turba poderia pisotear aquele que desejasse.

O clima era de festa e Francisco sentia enfim que aquilo era um tipo de diversão, um bom passatempo. Não a diversão gratuita e egoísta de um carnaval fora de época ou de um show de rock, mas a diversão produtiva, militante, correta, a diversão capaz de mudar o mundo

Os seguranças da universidade aguardavam os manifestantes em frente à rampa do prédio da reitoria. Aliás, a reitoria da Universidade Nacional do Brasil era composta por dois prédios contíguos, cada um com três andares. As duas estruturas eram conectadas por um rampa central em espiral e vazada, sem paredes, que levava do andar de um edifício ao andar seguinte do outro, de forma que seu início, no subsolo, conduzia ao térreo de um dos prédios, enquanto o térreo deste era ligado ao primeiro andar do outro, mais elevado, pela continuação da rampa, que seguia pelo segundo andar do primeiro edifício até os últimos pavimentos. Tudo aos complexos moldes da arquitetura moderna. Muito mais complexo do que a missão da turba: passar por cima de 15 seguranças fora de forma e longe da idade recomendável para desempenhar funções que exigem força. A maioria deles provavelmente se encaixaria em grupos que os indignados militantes gostariam de defender, mas infelizmente os seguranças se encontravam do lado errado, submetidos a uma opressão que os obrigava a defender o establishment. Era preciso libertá-los, ainda que eles não conseguissem entender que aquilo tudo era para seu próprio bem.

“VOCÊS NÃO QUEREM DEFENDER ESSA REITORIA”, “ELES TAMBÉM OPRIMEM VOCÊS”, “SEU LUGAR É DO NOSSO LADO, VEM PRA CÁ”, gritavam os manifestantes.

Francisco também gritava. Por que aqueles seguranças não podiam ser livres como a multidão? Precisavam ganhar dinheiro, claro… Mas a multidão poderia lhes oferecer mais do que dinheiro. Podia lhes conceder a liberdade, devolver-lhes o comando de suas próprias vidas. Seria um reinício para aqueles pobres coitados que nunca tiveram uma chance. Eles não estavam condenados ainda, podiam ser o que quisessem. Bastava se incorporar à massa. A massa que não estava submetida a ninguém, a nenhum interesse maior do que a liberdade de escolher o próprio caminho. Mas o dinheiro, como sempre, falou mais alto, e os seguranças permaneceram diante da multidão que, após o breve momento de generosa hesitação, voltou a se mover para cima da trincheira inimiga.

Apesar da idade avançada e dos quilos extras, a linha de defesa da reitoria sustentou bravamente o primeiro avanço, empurrando a primeira linha invasora, que caiu sobre os manifestantes que vinham atrás. Mas os militantes eram muitos e, apesar dos socos e empurrões dos seguranças, a resistência foi rompida. Os protetores da reitoria foram sendo engolidos pela massa estudantil que avançava sem misericórdia por cima deles aos gritos de “SEM VIOLÊNCIA”, correndo pela rampa de piso preto emborrachado em direção ao gabinete do reitor, localizado no terceiro e último andar do prédio mais alto.

A porta do gabinete do reitor estava guardada por mais cinco seguranças, esses um pouco maiores e mais novos do que os da primeira barreira. Entrar ali exigiria uma manobra mais cuidadosa do que o avanço feito para iniciar a subida, porque a porta permitia a passagem de menos pessoas e porque, apesar de a rampa ser escoltada por dois grossos corrimões de madeira, os vãos modernistas daquela estrutura eram um convite ao abismo. Mas a multidão não tem cuidado. A multidão não tem medo, não tem receio. A multidão não sente, ela avança. E a massa foi espremendo os seguranças contra a porta do gabinete até que aquela estrutura frágil e oca, composta por duas finas camadas de madeirite, cedeu. Os gritos de “SEM VIOLÊNCIA” agora eram acompanhados por pedidos de ajuda e por clamores agudos de vozes femininas que imploravam pelo fim da brutalidade e competiam com o som dos sopapos trocados entre os estudantes mais valentes e os seguranças, alguns deles já caídos no chão, mas ainda empenhados na batalha, que se transformara em um somatório de disputas individuais pela própria honra.

A multidão não tem cuidado. A multidão não tem medo, não tem receio. A multidão não sente, ela avança. E a massa foi espremendo os seguranças contra a porta do gabinete até que aquela estrutura frágil e oca, composta por duas finas camadas de madeirite, cedeu

Os gladiadores universitários ainda se atracavam quando os primeiros invasores tomaram a base inimiga. Não havia mais ninguém do corpo administrativo na sala. O reitor e suas secretárias já haviam deixado o recinto pelo elevador exclusivo, que levava direto para o térreo e cuja porta ostentava um grosso cadeado. A primeira porta rompida levava à antessala do gabinete, ocupada por duas mesas para as secretárias e dois armários de madeira com portas de vidro que exibiam os presentes recebidos pelos reitores, entre eles vasos chineses e flâmulas esportivas. Como a porta do gabinete também estava trancada, os estudantes arrombaram com suas pernas e ombros o último obstáculo, tão frágil quanto a primeira porta derrubada, e tomaram a reitoria.

“AHA, UHU, A REITORIA É NOSSA”, gritavam os vitoriosos aos pulos enquanto admiravam os seguranças baterem em retirada pela rampa, humilhados. Alguns dos funcionários da universidade sangravam. Alguns dos invasores também. Os dois lados contavam seus feridos e tratavam de medicá-los. Mas o sangue dos estudantes valia mais. E não apenas porque seus pais eram mais importantes ou porque eles tinham em suas contas bancárias mais dinheiro do que aqueles vigias ganhariam ao longo de um ano inteiro. A violência da instituição contra seus próprios alunos ajudaria a ampliar o até então tímido movimento. Aquilo não era mais apenas um protesto em resposta à opressão policial contra dois usuários de droga. A partir dali, a mobilização viraria um movimento em resposta à truculência de uma universidade contra os seus próprios alunos, que, ao invadir a reitoria, não faziam mais do que cumprir seu destino enquanto universitários: lutar para mudar o mundo.

As imagens da batalha, exibidas na televisão e compartilhadas pelas redes sociais, ajudaram a atrair ainda mais estudantes e professores para a ocupação nos dias seguintes e jogaram holofotes sobre a conduta do reitor nas mais diversas áreas. Justino Cadabra era acusado de favorecer o grupo de poder que se montara ao seu redor, não parecia ser capaz de colocar as contas da universidade em ordem e enfrentava dificuldades para cumprir suas promessas de campanha. Do outro lado do ringue, os estudantes sangravam por aquela universidade e, apesar das dores e dos lamentos, seu sangue era doce. Os invasores celebravam a vitória contra a equipe sênior dos seguranças, claro, mas cantavam também os motivos pelos quais lutavam. Eles lutavam pela liberdade, contra a opressão, por um mundo melhor. Seus inimigos estavam ali porque precisavam, porque eram obrigados, submetidos que estavam à lógica do capital. A reitoria oprimia, os estudantes libertavam.

Francisco estava ali porque queria, porque era livre, e tomou a liberdade de se sentar na cadeira do reitor. Confortável. Muito confortável. Era a peça mais moderna do gabinete, uma peça vinda do futuro diante da pesada mesa de madeira cheia de gavetas atrás da qual ela se escondia. Era uma cadeira grande, imponente, mas moderna, de couro preto e com uma estrutura metalizada, reclinando, fluindo com facilidade sobre suas rodas pela ampla sala até encontrar o tapete sobre o qual descansava a mesa de centro transparente com livros de fotos sobre Singapura e Taiwan. Os dois sofás, feitos de um couro tão agradável e escuro quanto o da cadeira, eram as peças da reitoria que melhor desempenhariam o papel de cama durante aquela aventura, e virariam alvo de disputa após intensos dias de debate e luta. Uma longa mesa de reuniões feita de madeira de lei e suas dez cadeiras completavam o mobiliário do cômodo e lhe davam um ar de dignidade que apenas a idade é capaz de atribuir. Nas paredes: diplomas, títulos, prêmios, prateleiras com troféus e gritos. Não, os gritos vinham do lado de fora da sala.

Capa do livro 'Oprimidos: A ocupação da reitoria'.
Capa do livro 'Oprimidos: A ocupação da reitoria'.

“VÃO ARRUMAR O QUE FAZER! Toda semana é isso!”, protestava um homem corpulento de cerca de 50 anos, cuja camisa suada e com os três botões mais elevados abertos emoldurava uma desagradável exposição de pelos grisalhos em seu peito.

Os funcionários da reitoria trancavam seus escritórios e deixavam o prédio, que passava ao comando dos estudantes. Rompida minutos antes, a barricada dos seguranças no início da rampa dava lugar a uma barreira estudantil. A partir daquele momento, só passariam por ali aqueles que os jovens permitissem.

“Qual é o motivo da invasão desta vez? Eu tenho três relatórios para entregar até o fim da semana. Tem colega de vocês que vai perder estágio por conta dessa brincadeira. A gente não consegue uma semana de paz!”, resmungava a bola de pelo cinza enquanto um colega o encorajava a deixar o prédio.

“Zé, vamos embora. Deixa essa turminha aí, eles querem é confusão mesmo.”

“Ô, Moreira, tem que ter algum limite. Tem que ter ordem. Esse pessoal não pode chegar aqui e fazer o que quiser toda a hora. Ele tiram todo mundo do prédio durante dias pra ficar essas menininhas desfilando de perna de fora.”

“AAHH, tinha que ser MISÓGINOOOO!”, surgiu Júlia do meio dos estudantes para enfrentar o rebelde servidor público. “Quer dizer que o senhor pode andar por aí com essa camisa aberta e os pelos de fora, mas a gente tem que esconder as pernas? Faça-me o favor, meu senhor. Este é um movimento sério contra a polícia e eu exijo respeito.”

“Contra a polícia? O que vocês têm contra a polícia?”, questionou o espantado Zé peludo.

“A presença de policiais zanzando pelo campus tira a liberdade da comunidade acadêmica”, respondeu Júlia, indignada.

“Tira a liberdade? Só se for a liberdade do bandido, e olhe lá. Quando levaram o meu carro desse estacionamento aqui da frente no mês passado não tinha policial nenhum pra ajudar. Tá é faltando policial por aqui. Vocês deviam protestar por mais polícia, não menos. Moreira, olha essa, a molecada quer menos policiamento. O que estão ensinado pros estudantes desta universidade?”

“Estão nos ensinando a ser livres. Ensinando a pensar, pra não acabar como um BUROCRATA FASCISTA DENTRO DE UM GABINETE”, respondeu Júlia, elevando o tom para que o Zé burocrata ouvisse toda sua réplica enquanto enfim descia a rampa da reitoria para conferir se seu carro novo continuava no estacionamento.

Sara confortou a amiga enquanto os novos chefes da reitoria seguiam para a primeira das várias assembleias que seriam realizadas durante os cinco dias de ocupação. Os seguranças ainda não tinham voltado para bloquear as entradas da reitoria — isso só aconteceria no início do quarto dia — e os manifestantes não precisavam se preocupar em ocupar todos os recintos acessíveis do prédio para garantir a sua posse. Partiram, então, os vitoriosos para o vão de cimento que dividia com um jardim o espaço de 50 metros entre os dois prédios da reitoria. Enquanto os estudantes se acomodavam no chão para ouvir os comandos de Gabriel, um outro foco de barulho se aproximou da reitoria. Eram 15 pessoas que carregavam bandeiras com reivindicações de moradia e seguiam o poeta sem-teto Carlos Brum.

Carlos achou que a melhor forma de contribuir para a causa em questão era agregar mais uma “camada reivindicatória” ao movimento — o que, segundo ele, não deixava de ter uma carga simbólica muito forte, já que a universidade era a segunda casa de muita gente ali.

“Além do mais, muitos desses gabinetes poderiam ser considerados território improdutivo”, Carlos acrescentou, debochando.

Oito dos sem-teto de Carlos passariam as férias na reitoria. Horas depois de eles chegarem, o poeta sem-espaço faria as honras de corretor ao apresentar os cômodos do empreendimento aos novos inquilinos. Antes, contudo, era preciso deliberar por meio de uma assembleia geral e soberana, entre as dezenas de assuntos que seriam discutidos durante aquela tarde, se o movimento aceitaria abrigar os sem-teto em território universitário.

Ao longo do debate sobre o assunto, em que os militantes se revezaram atrás de um megafone, não se levantou uma única voz contra a permanência dos novos inquilinos, o que não quer dizer que alguém tenha dispensado a oportunidade de manifestar sua opinião publicamente sobre a questão. E esse seria apenas o terceiro tópico de discussão do dia.

Primeiro, era preciso decidir se o movimento permaneceria no prédio. E não é que alguém quisesse sair, mas o debate, no qual, como era de costume na universidade, todos concordavam como se estivessem discordando, levou mais de duas horas para terminar. Ao final, todos levantaram as mãos a favor da ocupação. O segundo assunto a ser definido era a lista de reivindicações do movimento. O grupo chegou ali para expulsar a polícia, mas, já que estavam todos por lá, por que não acrescentar mais alguns itens à lista de exigências?

Primeiro, era preciso decidir se o movimento permaneceria no prédio. E não é que alguém quisesse sair, mas o debate, no qual, como era de costume na universidade, todos concordavam como se estivessem discordando, levou mais de duas horas para terminar

Os moradores da Casa do Estudante queriam a ampliação dos benefícios para os alunos carentes, uma promessa de campanha do professor Justino Cadabra. Eles também exigiam o arquivamento dos processos que pretendiam responsabilizar oito alunos pelo prejuízo calculado em R$ 29 mil causado pelo “catracaço” do ano passado, quando dezenas de estudantes pularam as catracas do restaurante universitário para comer de graça durante um dia inteiro, como forma de pressionar o reitor por melhorias naquele serviço.

O coletivo Transadas, por sua vez, exigia mais respeito aos transgêneros na universidade e protestava contra os rumos que a festa à fantasia do CA de Letras tinha tomado. Os transexuais demandavam a promoção de campanhas em favor da diversidade e a criação de uma semana dedicada a temas ligados à questão de gênero.

Na sequência, uma menina que usava um lenço na cabeça e que se apresentou como representante do Grupo Auto-organizado de Mulheres da Universidade Nacional do Brasil clamou pela liberdade das mulheres no campus, em protesto contra a “reação reacionária” e repressiva de parte da comunidade acadêmica ao ato em que dez estudantes seminuas protestaram contra o “androcentrismo” e a violência contra a mulher enquanto urinavam em baldes e se masturbavam. O ato tinha ocorrido algumas semanas antes da ocupação da reitoria. Segundo a moça, que demandava da universidade garantias de segurança para esse tipo de manifestação, o ato “foi uma demonstração de resistência e serviu como instrumento de arte para divulgar nossa luta e nossa causa, tão necessárias em um momento em que uma onda conservadora começa a tomar o país”. Ela seguia, interrompida apenas por aplausos da assembleia: “Parece que nosso protesto provocou desconforto em alguns, mas êxtase e raiva em outros, que só conseguiram expressar deboches e xingamentos. Isso quando não partiram para agressões físicas e intimidações. Aterrorizadas, as pessoas não compreendiam por que meninas sem roupa gritavam e urinavam em baldes. Diziam que a cena era deprimente e até hoje nos xingam nas redes sociais. Deprimente é a realidade dos fatos: nós, mulheres, somos expostas diariamente a homens urinando em público, mas isso é normativo em uma sociedade da normose, a doença da normalidade.”

A menina tinha razão. Podia-se acusar aquele grupo de manifestantes de qualquer coisa, menos de ser normal. Eles eram diferentes. Sentiam-se diferentes. Queriam ser diferentes. Se estivessem sob responsabilidade daquela assembleia, as leis da física provavelmente seriam revogadas uma a uma naquela tarde e sairiam todos flutuando contra a opressão da gravidade assim que o resultado da votação fosse proclamado. Mas voltemos a colocar os pés no chão, porque enquanto os estudantes se encarregavam dessas longas e libertadoras deliberações, carros de emissoras de televisão e de jornais começaram a estacionar ao lado da reitoria.

Os repórteres desciam dos veículos querendo saber quem era o líder do movimento e, ao perceber que alguns desavisados o apontavam como chefe, Gabriel se adiantou. Tal qual faria um verdadeiro líder, Gabriel disse aos repórteres que o movimento não tinha líderes, que era espontâneo e que ninguém iria falar com a imprensa até que a assembleia elegesse a diretoria de imprensa — da qual Francisco acabaria fazendo parte, por cursar jornalismo. Os assessores de imprensa do movimento ouviriam os questionamentos e responderiam aos jornalistas assim que designados. Os repórteres que quisessem informações teriam de aguardar o fim da reunião. Francisco pensou que talvez aquela profissão não valesse mesmo a pena.

Rodolfo Borges é jornalista, redator do El País Brasil. Este trecho é parte de Oprimidos: A ocupação da reitoria, publicado na plataforma KDP, da Amazon.

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