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Presidente na ficção, humorista é favorito em disputa eleitoral na Ucrânia

Admirador declarado de Bolsonaro, o ator Volodymyr Zelenskiy lidera as pesquisas para as eleições deste domingo explorando a insatisfação popular com a elite política

O ator e candidato presidencial ucraniano Volodymyr Zelenskiy em 6 de março, em Kiev
O ator e candidato presidencial ucraniano Volodymyr Zelenskiy em 6 de março, em KievSERGEI SUPINSKY (AFP)
María R. Sahuquillo

Volodymyr Zelenskiy já entrou em milhares de lares como presidente da Ucrânia. Talvez milhões. Esse comediante de 41 anos interpreta o chefe de Estado do país numa série nacional de grande sucesso, e agora pode dar o salto da ficção para a vida real. O ator, totalmente alheio à política até pouco tempo atrás, é o favorito no primeiro turno da eleição presidencial deste domingo, 31, nesta antiga república soviética, onde a guerra a fogo brando contra os separatistas do leste, apoiados pela Rússia, já causou 13.000 mortos. Os dados não são motivo para piada. Zelenskiy supera, segundo as últimas pesquisas, dois veteranos da política: o magnata do chocolate Petro Poroshenko, atual presidente, e a princesa do gás, Yulia Timoshenko, ex-primeira-ministra.

O ator e sua campanha pouco ortodoxa jogam com a vantagem de ele ser uma cara nova num país que se acostumou a tomar o café da manhã informando-se dos contínuos escândalos de corrupção, cinco anos depois dos protestos que, clamando por democracia e transparência, acabaram por derrubar o presidente Viktor Yanukovich, aliado da Rússia e envolto em turvos negócios. Os ucranianos estão frustrados, desiludidos e cansados da elite política, que não conseguiu cumprir as promessas centrais daquela mobilização, que consistiam não só em se aproximar do Ocidente como também reformar o sistema político corrupto e controlado pelos oligarcas.

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“Os cidadãos estão cansados, depois da revolução de 2014 tinham grandes expectativas que não se cumpriram. Em parte porque algumas não eram realistas, mas também porque o Governo não está fazendo o que prometeu. Assim, muitos acabam seduzidos pelas promessas de mudança oferecidas por Zelenskiy, que está tratando de mostrar que não é igual aos outros”, afirma Julia Kazdobina, diretora da Fundação Ucraniana de Estudos de Segurança. A Ucrânia (44 milhões de habitantes) encabeça pelo segundo ano consecutivo o ranking mundial de desconfiança no Governo, segundo uma recente pesquisa do Gallup. Só 9% dos cidadãos acreditam em seus governantes, quando a média dos Estados pós-soviéticos está em 48%; a média global se situa em 56%.

Mas essa inexperiência de Zelenskiy e, sobretudo, a ausência de um programa claro e concreto preocupam os diplomatas ocidentais que se reuniram com ele. O ator – que a exemplo de Donald Trump nos Estados Unidos explora uma mensagem populista e se tornou conhecido basicamente por aparecer na televisão – parece ter entrado a fundo no seu personagem da série Servidor do Povo (disponível inclusive na Netflix), na qual um professor do ensino médio acaba sendo eleito presidente da Ucrânia depois que um dos seus apaixonados discursos contra a corrupção, gravado por seus alunos e publicado no YouTube, se torna viral. Um presidente fictício que clama contra a oligarquia e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Bonecos de papelão em tamanho natural de vários candidatos à presidência da Ucrânia, nesta quinta-feira, em Kiev
Bonecos de papelão em tamanho natural de vários candidatos à presidência da Ucrânia, nesta quinta-feira, em KievS. GAPON (AFP)

Na vida real, Zelenskiy – que se declara admirador de figuras politicamente tão díspares como o ultradireitista Jair Bolsonaro e o tecnocrata liberal Emmanuel Macron, presidente da França – propõe eliminar a imunidade dos parlamentares, governantes e juízes e convocar referendos para temas importantes. Também acabar com o aparelhamento político do Judiciário, conceder anistia fiscal a empresários que legitimem ativos ocultos em troca de um imposto de 5% e trabalhar em parceria com o FMI, que já emprestou milhões de euros à Ucrânia.

Com essas promessas, entre 18% e 23% dos eleitores ucranianos têm a intenção de votar no ator, segundo pesquisas independentes publicadas nesta quinta-feira, 28. Aparecem em seguida Poroshenko, de 53 anos, e Timoshenko, de 58, quase empatados com entre 10% e 16% das intenções de voto para o primeiro turno do domingo que vem. Um pleito em que se apresentam 39 candidatos (apenas mulheres), um recorde absoluto. Se nenhum deles obtiver 50% dos votos, os dois primeiros se enfrentarão no segundo turno, em 21 de abril. E, com 20% de indecisos e 31% de cidadãos que ainda não sabem nem mesmo se irão votar, ainda pode haver muitas reviravoltas.

Poroshenko em um comício na localidade de Lviv, nesta quinta
Poroshenko em um comício na localidade de Lviv, nesta quintaEfe

Acaba de fazer cinco anos que a Rússia anexou a península ucraniana da Crimeia, com um referendo considerado ilegal internacionalmente, o que deu início a um conflito que está muito longe de ser resolvido. Nesse ambiente e com a tensão à flor de pele, Poroshenko, que logo depois da anexação conseguiu vencer as eleições com uma maioria esmagadora, centrou sua campanha numa mensagem patriótica, com o lema “Exército, idioma e fé”, com o qual tenta contrabalançar seus escassos avanços na luta anticorrupção. O atual presidente, que ficou bilionário graças ao seu império empresarial – que manteve enquanto ocupa a presidência – apresenta-se como um baluarte contra o presidente russo, Vladimir Putin, e vende como um grande feito a cisão da Igreja Ortodoxa ucraniana em relação à russa. Na Ucrânia, só um presidente conseguiu a reeleição desde a dissolução da URSS, em 1991.

Para Timoshenko, esta é sua terceira disputa eleitoral. Mais conhecida no Ocidente por ser o rosto da chamada Revolução Laranja de 2004 e por ter sido processada e encarcerada pelo Governo do pró-russo Yanukovich, muitos a acusam agora de ter se tornado uma populista. Duas vezes primeira-ministra, formada em economia e ex-chefe de uma empresa de gás com a qual obteve suculentos contratos, prometeu também acabar com a corrupção, elevar as pensões e fazer algo para controlar os preços do gás.

Timoshenko numa entrevista coletiva em Kiev
Timoshenko numa entrevista coletiva em KievAFP

Neste cenário de políticos habituais, argumenta o cientista político Mykola Davydiuk, votar no novato Zelenskiy pode ser uma punição às velhas elites e à sua inação para resolver os grandes problemas do país. As precárias condições de trabalho e o desemprego (10%, segundo dados oficiais) levaram cerca de quatro milhões de ucranianos a procurar trabalho no exterior, de acordo com as últimas estatísticas. No mesmo ritmo, apesar de a economia ter se estabilizado, as tarifas dos serviços públicos subiram. E isso afetou o bolso dos cidadãos e sua qualidade de vida. O salário médio ficou estagnado em cerca de 350 dólares (cerca de 1.365 reais) por mês.

“E enquanto isso os empresários e os amigos dos políticos continuam enriquecendo às nossas custas”, reclama Olena Pashkovska na Praça da Independência, onde dezenas de pessoas foram mortas em protestos contra Yanukovich em 2014. Esta arquiteta de 35 anos, que também saiu às ruas há cinco anos naquela revolução do Euromaidan (maidan significa praça em ucraniano), votará em Zelenskiy. Pelo menos no primeiro turno, admite.

O comediante e produtor, oriundo da região de Dnipro, de língua russa, está muito ativo nas redes sociais nesta campanha. Tem quase três milhões de seguidores em sua conta do Instagram. E sua equipe o chama de Ze nos comunicados e nas informações que divulga. Também tem uma vantagem adicional: seu partido se chama Servidor do Povo, assim como a série de televisão que protagoniza. Isso lhe dá uma publicidade gratuita. E não é a única.

Zelenskiy se prepara para apresentar seu espetáculo ‘Liga do Riso’, em 19 de março
Zelenskiy se prepara para apresentar seu espetáculo ‘Liga do Riso’, em 19 de marçoGetty

Seus críticos o acusam de ser um fantoche do poderoso oligarca Igor Kolomoiski, envolvido em um escândalo bancário e em cujo canal de televisão 1+1 se pode ver nos últimos dias não só a terceira temporada da série de Zelenskiy, mas também outras ficções das quais participa. Algo que enfureceu Poroshenko, que processou o canal. Zelenskiy não explicou as ligações entre sua campanha e Kolomoiski. Mas isso, se é que os ucranianos não estão levando as pesquisas na brincadeira, não parece estar prejudicando sua popularidade.

Desconfiança dos cidadãos

Em uma sociedade desiludida e desconfiada em relação aos políticos e em pleno conflito com a Rússia, os observadores internacionais colocaram sob a lupa as eleições na Ucrânia, onde 31% dos cidadãos ainda não decidiram se irão às urnas. Muitos dos que não votarão se escudam na falta de fé no sistema: apenas 12% dos ucranianos acreditam na lisura das eleições, de acordo com uma pesquisa do Gallup. Algo que mostra um panorama preocupante se os resultados forem muito apertados.

O cientista político Mykola Davydiuk também tem dúvidas sobre as pesquisas. E muitos, além disso, temem campanhas de desinformação da Rússia e também a pirataria. Já houve algumas manobras estranhas nessas eleições. Como a inscrição de um candidato com um nome quase idêntico –Yuriy Tymoshenko – ao de uma das favoritas, Yulia Tymoshenko, colocado justamente acima do dela na cédula eleitoral. A ex-primeira-ministra teve de fazer novos panfletos pedindo aos eleitores para não se enganarem.

Mas a lisura e a confiança nas eleições em um país que viu uma centena de mortos nos protestos pela democracia há cinco anos podem representar um passo importante. Um empurrão para conseguir maior integração política e comercial com a União Europeia, dizem os analistas. Os ucranianos não precisam mais de visto para entrar nos países da UE, e há algumas semanas o Parlamento ucraniano votou uma emenda constitucional para blindar seu compromisso com a integração na OTAN e no clube comunitário.

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