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Um Brasil de dedo em riste às portas do Mackenzie

A expectativa de uma visita do presidente Jair Bolsonaro à universidade em São Paulo, cenário emblemático da luta estudantil durante a ditadura, gerou embates inflamados entre estudantes e bolsonaristas

Estudantes e militantes se manifestam contra e a favor de Bolsonaro, na Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Beatriz Jucá
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Cenário emblemático da luta estudantil em São Paulo durante a ditadura militar, o entorno da Universidade Presbiteriana Mackenzie voltou a ser palco de tensão entre estudantes e militantes na tarde desta quarta-feira. A expectativa de uma visita de Jair Bolsonaro ao local poucos dias após determinar a celebração do golpe de 1964 (que completa 55 anos no próximo 31 de março) causou um mal estar entre estudantes da universidade, que marcaram uma série de atos de repúdio ao presidente. A visita seria para conhecer uma pesquisa sobre grafeno (um material usado na engenharia de inovação tecnológica), mas a questão é bem mais simbólica: há 50 anos, o local foi palco de embate entre estudantes da Mackenzie, que apoiavam a ditadura, e alunos da USP, contrários ao regime, num episódio que ficou conhecido como a Batalha da Maria Antonia. A posição dentro da universidade mudou, e o movimento estudantil fez questão de deixar claro que Bolsonaro — o primeiro presidente a defender abertamente a ditadura desde a redemocratização — não era bem vindo. A visita foi cancelada, mas mesmo assim apoiadores e opositores de Bolsonaro se aglomeraram às portas da universidade e protagonizaram cenas de embate e discussão que retratam um Brasil à flor da pele.

"Eu prefiro a liberdade, não quero o Brasil da injustiça nem do ódio", gritava o estudante secundarista Gabriel Rodrigues, 18 anos, a militantes que apoiam Bolsonaro em meio a uma discussão acalorada, com direito a dedos em riste e tentativas de pontapés de todos os lados. Ele foi até a Universidade Mackenzie participar do ato "Sou mackenzista e não comemoro o golpe de 64", mas conta que foi xingado por apoiadores do presidente pela camisa que usava, com a frase "A casa grande surta quando a senzala aprende a ler". Enquanto conta a sua versão, é interrompido várias vezes por outros manifestantes, que argumentam que ele se vitimizava quando na verdade havia xingado uma bolsonarista momentos antes. "Ele me chamou de capitão do mato e colocou o dedo na minha cara. Eu não quis processar por ele ser jovem, mas é feio né?", conta a mulher, que não se identificou. "Você tem que ouvir a versão dela, que é mulher negra, não a dele", diz outro manifestante pró-Bolsonaro. Sem conseguir interromper a entrevista, ele acusa a repórter: "Você expulsou uma mulher negra. Não vai ouvir?". Ela, porém, não deu entrevista. A tensão segue com manifestantes acusando jornalistas de tentarem sequestrar a narrativa enquanto publicam vídeos em tempo real na internet.

É uma hora da tarde, e os ânimos estão aflorados de ambos os lados. Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro ocupam a fachada da universidade, com uma caixa de som e um microfone, alternando gritos de "Esquerda nutella vai pra Venezuela" com o canto do hino nacional. Balançando bandeiras do Brasil e material de campanha do presidente, estão ali para apoiar Bolsonaro neste momento em que sua popularidade cai rapidamente. A maioria do grupo é de pessoas mais velhas, que têm ido às ruas em diversas ocasiões para defender o presidente. Mas dentro da universidade, alunos apoiadores de Bolsonaro também chegaram a se mobilizar para recepcionar o presidente. Todos estavam ali para fazer um contraponto a estudantes secundaristas e universitários, que desde a manhã desta quarta-feira realizavam protestos contra o presidente e a ditadura militar, sob gritos de “Ô Bolsonaro, seu fascistinha, os mackenzistas vão botar você na linha”.

Manifestantes durante ato contra a ditadura militar, no interior da Universidade Mackenzie
Manifestantes durante ato contra a ditadura militar, no interior da Universidade MackenzieUNE

Durante a manhã, os estudantes chegaram a fechar a rua Maria Antônia, uma importante artéria do centro de São Paulo que viveu um conflito histórico em 1968. A emblemática batalha da Maria Antônia começou na época do AI-5, a regulação mais dura do regime, depois que um estudante da Mackenzie, irritado com o pedágio cobrado por alunos da USP para custear um congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), atirou um ovo podre contra eles. Os alunos de ambas as universidades acabaram se enfrentando com rojões, foguetes, coquetéis molotov e tiros. O confronto se seguiu até o prédio da USP ser incendiado e terminou na morte do estudante secundarista do Colégio Marina Cintra, José Guimarães, de 20 anos, atingido por um tiro quando passava pelo local. Desde o fim da ditadura, há um movimento estudantil na universidade que tenta se descolar da imagem de elitista e apoiador do golpe. "Após os 50 anos da Batalha da Maria Antônia, vamos mostrar que nós, mackenzistas, estamos ao lado certo da história", diz a organização do ato, em evento criado no Facebook.

"Não tinha tanto comunista assim na minha época", diz a ex-aluna do Mackenzie, Cristina Rocha. Filha de militar, ela estudava artes plásticas na universidade na época da Batalha da Maria Antônia, mas não participou dos protestos."Meu ex-marido era do Comando de Caça aos Comunistas daqui da Mackenzie, mas eu estava mais preocupada em cuidar da minha casa e da minha filha", diz. Ela conta que naquela época havia um movimento centralizado e pequeno e lamenta que as universidades tenham se comprometido com a esquerda nos últimos anos. Há quatro anos, Cristina participa do grupo Ativistas Independentes e vai às ruas lutar contra a esquerda. Nesta quarta-feira, ela foi à Mackenzie com um broche do torturador Carlos Brilhante Ustra. "Na época da batalha, eu era contra a ditadura. Caí na conversa do senhor Lula. Os militares fizeram um papel importantíssimo, e a gente não deu valor. Acontece que eles são apolíticos e não deveriam ter ficado 20 anos como ficaram", diz. Para ela, uma nova ditadura seria justificável se houver uma ameaça do que chama de "ditadura do proletariado" ou uma "tentativa de transformar o Brasil em Cuba". "Guerra é guerra. Se amanhã você passar aqui, eu te dou um tiro. Foi pouco o que foi morto [na ditadura]", diz.

O estudante de direito Carlos Eduardo, que chegava à Universidade Presbiteriana Mackenzie, fala aos manifestantes que Bolsonaro pode ser preso. Cita o cheque que a primeira dama Michelle Bolsonaro teria recebido de Fabrício Queiroz na investigação de funcionários laranjas no gabinete do filho do presidente, Flávio. Militantes gritam "vagabundo" e "vai trabalhar", e ele resolve entrar rapidamente na universidade. Estudantes secundaristas contra o presidente revidam, dizendo que "é uma vergonha ser apoiador de milico". Um novo momento de tensão se instala no local. Secundaristas argumentam que não se pode apoiar um presidente que legitima o racismo, a homofobia, a ditadura militar. Uma manifestante responde: "É isso que dá ouvir professor de sociologia e filosofia. Vocês foram doutrinados". Voltam os gritos. De um lado, manifestantes bradam "O Lula tá preso, babaca". Do outro, estudantes respondem: "Lula, ladrão, roubou meu coração".

Cristina Rocha, ex-aluna da Universidade Mackenzie, era contra a ditadura na época da Batalha da Maria Antônia. Hoje, defende o regime
Cristina Rocha, ex-aluna da Universidade Mackenzie, era contra a ditadura na época da Batalha da Maria Antônia. Hoje, defende o regime

Já são quase 14h. Dentro da universidade, a estrutura que havia sido organizada para receber o presidente, como a instalação de um pequeno púlpito e um coffee break, já foi desmontada. Do lado de fora, seguranças forçam um cordão em direção à rua, e os manifestantes vão se dispersando. Ficam pequenos grupos que tentam dialogar. Com um broche de Ustra preso no peito, a manifestante Rak Resende, de 51 anos, conversa com a estudante Bárbara Sampaio, de 26 anos. "A gente não veio aqui para afrontar vocês", diz Resende. Bárbara questiona o fato de ela defender a liberdade de expressão e usar o broche de um torturador, mas Resende rebate que, se ela usasse um broche do ex-candidato Guilherme Boulos, não a julgaria. A estudante tenta explicar que há proporções diferentes entre torturar pessoas e incentivar ocupações de imóveis vazios, mas não a convence. Insiste que a ditadura torturou e matou muita gente, mas as duas não conseguem chegar a um acordo. "Quem eles falam que morreram foram os libertários. A história vai dizer quem estava certo", minimiza Resende.

Os poucos apoiadores de Bolsonaro que permaneciam no local foram rodeados por estudantes, que tentavam discutir pautas que iam desde os escândalos envolvendo a família Bolsonaro até a reforma da Previdência e as pautas identitárias. Mas as tentativas de diálogo eram sempre repletas de tensão e deboche de ambos os lados. Em cada roda de conversa, opositores apontavam contradições, mas pareciam pouco dispostos a olhar para as suas próprias. O fato de ter bolsa na universidade, um Iphone ou um tênis Addidas entrava no debate político tanto no discurso dos que se identificam com a direita e a esquerda, e todos se acusavam mutuamente de serem desocupados por estarem ali, em teoria, exercendo seu direito de liberdade de expressão. "Cada um luta de um lado, e todo mundo tem razão", se satisfaz Rak Resende.

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