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Reforma europeia garante direitos de autor na Internet, mas levanta receios sobre liberdade

Parlamento continental aprova regra destinada a proteger criadores contra gigantes como Google. Críticos acham que o texto afetará a Rede negativamente

Manifestantes pedem o voto favorável à nova regulamentação dos direitos autorais em frente ao Parlamento Europeu, nesta terça-feira, em Estrasburgo.
Manifestantes pedem o voto favorável à nova regulamentação dos direitos autorais em frente ao Parlamento Europeu, nesta terça-feira, em Estrasburgo.FREDERICK FLORIN (AFP)
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A reforma dos direitos autorais na União Europeia atingiu sua meta. Após uma corrida de dois anos e meio, com dezenas de obstáculos, acidentes de percurso e até alguma paralisação, o texto cruzou a linha de chegada: já é uma diretriz a ser incorporada às legislações nacionais dos Estados membros da União Europeia. Com 348 votos a favor, 274 contra e 36 abstenções, o Parlamento Europeu, em Estrasburgo (França), selou aquele que muitos eurodeputados consideram ser o debate mais polêmico de que se recordam. Milhares de artistas comemoram sua vitória: plataformas como o YouTube terão que obter licenças dos criadores ou, na falta disso, se esmerar em impedir o acesso a obras que utilizem material protegido sem autorização; e os editores de imprensa poderão exigir acordos (e pagamentos) a sites e agregadores de notícias como o Google News por utilizar seus conteúdos. Os críticos, por sua vez, se preparam para um apocalipse digital: alegam que o texto acabará com a liberdade na rede, a ser substituída pelo reinado da censura. O tempo dirá quem tinha razão, mas em algo quase todos estão de acordo: abre-se uma nova era na Internet.

Depois do desenlace, as armas por fim se calam. E isso que seu ruído chegou a ser ensurdecedor, num choque de colossais interesses ideológicos e econômicos. Entre as vítimas, além do rigor e das nuances, estava a própria transmissão por streaming do Parlamento europeu: caiu justamente no momento em que o resultado seria anunciado. Durante meses, artistas, políticos, ativistas, gravadoras, acadêmicos, o Google e até a ONU lançaram profecias, relatórios, manifestos, ameaças e mentiras para condicionar o voto. Uns insistem em que a reforma busca proteger criadores e jornalistas e lhes garantir uma remuneração justa perante empresas que ganham milhões de usuários e de euros graças às suas obras. Outros gritam que a nova regra criará uma rede menos democrática. "Teremos uma Internet censurada, da idade do Neolítico", alerta Simona Levi, do coletivo Xnet, que qualifica como "dia negro" a jornada desta terça.

No mínimo a UE tem agora uma regra mais moderna, pois até agora vigorava um texto de 2001. O resto, por outro lado, é território incerto. A letra do artigo 17 insiste que os portais dedicados a armazenar, organizar e difundir conteúdos de usuários com fins comerciais (o YouTube, por exemplo) devem contar com uma licença prévia dos criadores dessas obras. E o artigo 15 confere aos editores de imprensa o direito de conceder ou não seu aval a sites com fins lucrativos para que compartilhem "fragmentos significativos" de suas publicações. Os legisladores pretendem assim atender às queixa dos autores, indignados com o fato de suas obras chegarem a mais espectadores e leitores do que nunca, mas com os lucros sendo desviados para outros bolsos. As interpretações, entretanto, diferem enormemente.

O autor da iniciativa, o alemão Axel Voss, do grupo Partido Popular Europeu (conservador), e sua bancada querem que portais como o YouTube se disponham a negociar com os criadores. Do contrário, que se responsabilizem pelo que os usuários compartilharem em sua plataforma. Até agora, as plataformas escudavam-se na interpretação de que só tinham que reagir a posteriori, quando fossem comunicados de que estavam hospedando conteúdo não autorizado. Eram os chamados "portos seguros". Agora, exige-se um papel mais proativo da parte deles. No mínimo, devem demonstrar que realizaram “os maiores esforços” para alcançar um pacto, impedir rapidamente o acesso às obras denunciadas e se encarregar de que não voltem a estar disponíveis.

Axel Voss vota a favor da reforma do 'copyright', da que foi o principal impulsionador, hoje em Estrasburgo.
Axel Voss vota a favor da reforma do 'copyright', da que foi o principal impulsionador, hoje em Estrasburgo.FREDERICK FLORIN (AFP)

Como farão isso? Eis aqui a chave do protesto da Julia Reda, do Partido Pirata, líder do grupo contrário à reforma. Na falta de licenças, os sites deverão se esforçar para evitar acolher conteúdos piratas. A regra afirma explicitamente que “a aplicação deste artigo não levará a nenhuma obrigação de monitoramento geral". Mas os opositores alegam que a solução real acabará sendo um algoritmo. Reda e os milhares de ativistas da campanha online SaveTheInternet salientam que as máquinas já censuram grandes obras de arte consagradas por causa de algum nu, e se perguntam: o que acontecerá com milhões de conteúdos? Além disso, acreditam que poucos poderão permitir o custo de um sistema desses, por isso preveem um futuro oligopólio digital.

O texto estabelece exceções para enciclopédias online sem fins lucrativos, plataformas como Tinder e Dropbox, paródias, caricaturas, entrevistas, resenhas e críticas, o que parece proteger memes e GIFs, e também inclui mecanismos de reclamação para os usuários da Internet. Ao mesmo tempo, tutela as start-ups: para as companhias que tiverem menos de três anos de atividade e faturamento inferior a 10 milhões de euros (43,6 milhões de reais) por ano, o nível de responsabilidade diminui. Entretanto, os opositores defendem que na realidade isso gerará o caos. E que — nisso concordam com o Google — o maior prejudicado será o usuário.

Uma participante na manifestação a favor da reforma do direito de autor, hoje em Estrasburgo.
Uma participante na manifestação a favor da reforma do direito de autor, hoje em Estrasburgo.FREDERICK FLORIN (AFP)

O outro enfrentamento se centra no artigo 15. Sua formulação deixa claro que links e palavras soltas estão a salvo, assim como o usuário: a reforma afeta os buscadores, agregadores de notícias e outros sites que compartilharem fragmentos relevantes de um artigo. A nova regra europeia quer que os editores sejam remunerados, já que os sites obtêm um grande benefício com artigos de jornais e revistas. O Google responde que talvez retire o Google News da Europa, com o prejuízo que isso acarretaria aos meios de comunicação. Afinal de contas, o serviço já deixou a Espanha em 2014, após a aprovação de uma lei parecida. O buscador alega que já contribui para aumentar o tráfego dos sites dos jornais, que poderão perder até 45% da sua audiência. A norma impõe também que parte do faturamento seja repassado aos jornalistas, mas os críticos indicam que o poder dos editores transformará isso em letra morta.

Artigos menos polêmicos da regra (o 18, o 19 e o 20) aumentam a proteção aos criadores: obrigam os portais a terem uma maior transparência, informando os artistas ao menos uma vez por ano sobre seus rendimentos e o uso de seu repertório. Também ficará mais fácil para estes irem embora se não estiverem satisfeitos com a plataforma que divulga seu trabalho. Com a regra, além disso, a UE também se reafirma como principal polícia dos colossos de Internet. Já exigiu que prestassem contas por supostas fraudes fiscais, limitações da concorrência ou violações da privacidade. E, agora, pelos direitos autorais.

Os 27 Estados membros terão dois anos para transformar a diretiva em leis nacionais. Mas alguns especialistas observem de saída uma nova batalha: dizem que o texto é tão ambíguo que cada país o transformará segundo sua conveniência. "Esperamos poder trabalhar com os responsáveis políticos, editores, criadores e proprietários de direitos à medida que os Estados membros da UE avançarem na aplicação destas novas normas", afirma o Google. Uma frente se fecha, mas 27 outras podem se abrir.

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