_
_
_
_
_
Crítica
Género de opinião que descreve, elogia ou censura, totalmente ou em parte, uma obra cultural ou de entretenimento. Deve sempre ser escrita por um expert na matéria

Imune à sua dor e a alguns lampejos de glória

Admitindo a identificação que podem me causar os universos centrados na perda e no sofrimento, não consigo que o cineasta encarnado por Banderas revire minha alma nem pouco, nem muito, nem nada

Carlos Boyero
Antonio Banderas, em ‘Dor e Glória’.
Antonio Banderas, em ‘Dor e Glória’.
Mais informações
Antonio Banderas interpreta ‘alter ego’ de Almodóvar em seu novo filme
O dia em que Almodóvar enfrentou a censura dos EUA

A frase de Oscar Wilde é tão engenhosa quanto discutível: “Senhor, livrai-me da dor física, que da dor moral eu me ocupo”. Pode acontecer que ambas se aliem com efeitos devastadores para a vítima. E se restam forças ou puro instinto de sobrevivência diante dos predadores, se tentará atenuá-las, pedir-lhes uma trégua, mascará-las. Por meio de heroína, analgésicos mais fortes, mergulho no espírito desolado, nas memórias de um remoto esplendor na relva, na recuperação das pessoas, sensações, sentimentos que deram sentido e até mesmo fugaz plenitude à existência.

Em Dor e Glória, Pedro Almodóvar se propõe a fazer a crônica dos múltiplos pesares, anseios, memória sentimental, impotência criativa, necessidade de redenção, asfixia, insônia, tortura interna, doenças dilacerantes e ameaça que tenha se instalado a peste definitiva em um personagem transparentemente parecido com ele. Evidentemente, seu físico não é o de Antonio Banderas, mas essa é a liberdade permitida pelas ficções, por mais realistas que pretendam ser. E não duvido de sua sinceridade, da libertação que pretende esse dilaceramento, da verdade que quer imprimir ao que conta, de sua suposta complexidade emocional, da força exigida pelo despudor de se despir em público, da necessidade urgente de acertar contas com o passado quando no presente tudo é incerteza, desolação, solidão e medo. Sim...

Admitindo o fascínio, a identificação e a angústia que podem me causar os universos protagonizados pela perda, o sofrimento, o fracasso e a evocação, não consigo que o tormento, os reencontros transcendentes e a necessidade de cura desse diretor tão universalmente famoso e admirado quanto intimamente perdido revirem minha alma nem pouco, nem muito, nem nada. Não me impressiona tanto como sua obra posterior ao excelente e verdadeiramente emocionante Volver. Inclusive tem alguns momentos que me parecem belos, mas o calvário interno de Salvador Mallo, assim se chama o personagem, me é bastante indiferente. Essas coisas do cinema ou da arte com intenções de ser maiúsculo, ou seja, que você se conecta com ele, te deixa uma marca, vive em sua memória durante muito tempo ou o tédio te ameaça diante do supostamente profundo e sublime e você desliga sem esforço daquilo que te narraram a cinco minutos do desenlace.

Três quartos deste filme (sim, filme, embora já pretendam colocá-lo no templo mais sagrado da cultura, da arte universal, do classicismo intocável engendrado em toda a história deste país, da Bíblia em verso) seguem o torturado artista, o labor franciscano que exerce a devotada assistente com o oceano de problemas, o surgimento imprevisto ou buscado de antigos amores que o vento não levou de todo, que deixaram marca indelével, apesar dos pesares, dos inesquecíveis abraços que dá a heroína, mas também os coices mentais e físicos que ela pode acertar se faltar ou caso se tente abandoná-la. Tudo isso animado — como é habitual no cinema de Almodóvar — pelos fetiches literários, pictóricos, musicais e de dança que o autor ama naquele momento. E grande quantidade de design luxuoso. Como sempre.

Mas também existe outra parte em que aparece a beleza, na qual nada me parece empostado, com capacidade de me comover. É a reconstrução no cérebro e na alma desse ancião encurralado de sua infância, a vertigem que lhe provoca a descoberta de sua sexualidade, o irrenunciável amor ao cinema que era projetado em uma parede e onde cheirava a jasmim e urina enquanto soprava a brisa, as mulheres que logicamente o cativavam e às quais desejava o melhor (talvez pressentindo seu fim trágico sem razão), como Natalie Wood e Marilyn Monroe. Não são reflexões melosas ou forçadamente líricas. Acredito nelas. E acho admiráveis os retratos que faz de sua mãe quando era jovem e em seu crepúsculo. Nesses momentos, entro na história. Cativa-me a beleza estética e sentimental dessa sequência em que a mãe e as vizinhas lavam roupa em um rio e a estendem ao sol. E, como não, toca uma canção de Rosalía, a cantora que agrada aos paladares de requintados e plebeus, interpretando A Tu Vera. E me parece profunda, calorosa e luminosa a interpretação de Penélope Cruz. Também a de Julieta Serrano, temerosa, reflexiva e protetora em relação a esse filho que intui que não é feliz. O que mais me atrai? É bom o monólogo teatral que Asier Etxeandia interpreta e o surpreendente e brilhante final do filme.

Durante a entusiasta e interminável divulgação de Dor e Glória, terreno em que Almodóvar sempre demonstrou ser um virtuoso, Antonio Banderas repetiu à saciedade sua transcendência histórica. Também o risco e a imensa qualidade que encerra. E entendo que deve ter realizado de forma exemplar o que lhe foi pedido por Almodóvar, que se meteu em sua pele e em seu espírito, sua gestualidade e seu tom, sua expressividade e seu enigma, sua intensidade e sua amargura. Não me surpreenderia que lhe chovessem merecidos prêmios. Tudo está previsto para o sucesso acadêmico e uma venturosa carreira comercial. Meu problema com a interpretação de Banderas é que o personagem me deixa frio ou me cheira a eterna impostura. Cada um se diverte como quer ou como pode.

DOR E GLÓRIA

Direção: Pedro Almodóvar.

Intérpretes: Antonio Bandeiras, Asier Etxeandia, Penélope Cruz.

Gênero: drama. Espanha, 2019.

Duração: 113 minutos.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_