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O primeiro dia depois do inferno em Suzano

Escola estadual Professor Raul Brasil foi reaberta para alunos nesta terça-feira com atividades lúdicas. Comunidade escolar tenta reescrever a própria história após massacre

Beatriz Jucá
Rhillary Barbosa de Souza, 15 anos, que sobreviveu ao massacre em Suzano depois de lutar com um dos atacantes.
Rhillary Barbosa de Souza, 15 anos, que sobreviveu ao massacre em Suzano depois de lutar com um dos atacantes.Caio Castor

São três horas da tarde de terça-feira, o sétimo dia após o massacre de Suzano. No portão da escola estadual Professor Raul Brasil, algumas alunas se aproximam das três merendeiras que, há uma semana, fizeram uma barricada com freezers e salvaram dezenas de estudantes na cozinha durante o ataque que matou cinco alunos e duas funcionárias da escola. “Tia, eu queria agradecer. Vocês me salvaram na cozinha, são heroínas”, diz uma delas, enquanto abraça as cozinheiras no dia em que a escola foi reaberta com atividades lúdicas para os alunos que quisessem retornar ao local. Durante toda esta semana, a escola oferece uma programação especial para que a comunidade escolar tente reescrever a história da escola que viveu um verdadeiro inferno na semana passada.

“Nós somos reconstrutores agora”, diz a cozinheira escolar Silmara Cristina Silva de Morais. Faz dez anos que ela divide a cozinha da escola Raul Brasil com as companheiras de profissão, Lizete Alves dos Santos e Sandra Aparecida Ferreira. Acostumadas a tomar todas as decisões juntas no cotidiano de trabalho, as três foram ágeis ao acolherem quantos alunos coubessem na cozinha para protegê-los do ataque a tiros na escola. Mas nesta terça-feira elas evitam falar disso. “Não quero relembrar o dia”, diz Silmara. “O coração ainda está despedaçado. A gente veio pela alegria de ver os estudantes voltando. São a nossa força”, emenda Sandra.

Elas contam que foi difícil retornar e não ver alguns rostos que conheciam desde sempre, mas nenhuma cogita abandonar o barco depois do trauma. “Aqui é a nossa segunda casa, e nós precisamos reconstruir tudo”, defende Silmara. O que aconteceu, elas sabem, vai redefinir a escola. Por isso, neste momento, professores e funcionários tentam passar para os estudantes que eles podem reescrever a história para que a escola não seja definida pelo massacre, mas pelos elos de amizade reforçados pela dor. “Os alunos não conseguem falar muito porque estão muito emocionados, mas quando eles dizem 'posso dar um abraço, tia?', já estão dizendo tudo”, complementa Lizete.

As merendeiras Lizete Alves dos Santos (direita), Silmara Cristina Silva de Morais (centro) e Sandra Aparecida Ferreira salvaram dezenas de alunos usando freezers como barricada na cozinha da escola.
As merendeiras Lizete Alves dos Santos (direita), Silmara Cristina Silva de Morais (centro) e Sandra Aparecida Ferreira salvaram dezenas de alunos usando freezers como barricada na cozinha da escola.Caio Castor

Desde as dez horas da manhã, estudantes e pais chegavam à escola. Sem horário a cumprir ou atividades obrigatórias —ainda não se sabe quando as aulas deverão ser de fato retomadas—, permaneciam ali o tempo que desejassem. Do lado de dentro, grupos de apoio psicológicos, espaços abertos para esportes, grupos de oração, ações de reiki e massoterapia. Tudo intercalado com simbólicos momentos em que todos se reuniam para homenagear as vítimas da tragédia lançando balões brancos ao céu. Lá fora, grupos religiosos distribuíam balas e rosas enquanto estudantes preenchiam as paredes da escola com cartas, flores e pinturas. “É uma forma de demonstrar o nosso sentimento, da gente se expressar”, diz Gabriel Pedro de Alcântara, de 17 anos.

Muitos estudantes se veem como sobreviventes, mas não querem falar sobre a tragédia. Vieram buscar no reencontro com os amigos traços de uma escola que já não é a mesma. Para receber os alunos, a Raul Brasil foi reformada. O pátio da entrada, onde as duas funcionárias da escola foram assassinadas, teve o piso de azulejos coberto com cimento. As paredes internas também foram pintadas de azul e amarelo. Ao longo do dia, caminhões descarregavam dezenas de cadeiras e mesas novas para as salas de aula. Tudo para tentar amenizar a cena do crime na cabeça dos alunos. “Essa cena não pode ser maior que a história das vítimas para eles”, diz o psicólogo e técnico da Secretaria da Justiça, Bruno Fredi, que organiza atividades no local. Ele diz que os jovens estão retornando à escola com medo de um novo ataque e bastante fragilizados, mas que a escola está aberta para que eles possam demonstrar o que sentem.

“Eu senti um desespero porque, mesmo com a escola pintada, não tem como esquecer o que a gente viveu, conta a estudante Khetlynn Adrielly, de 16 anos. Ela retornou à escola com as amigas Maimby Alecx e Samanta Oliveira. Durante ataque, esteve todo o tempo com Khetlynn, já que Samanda havia perdido o horário neste dia. Estavam no banheiro quando elas ouviram os primeiros tiros, mas não se preocuparam porque acharam que era algum colega brincando com bombinhas. Só se deram conta da gravidade da situação quando outros estudantes entraram correndo para se esconder. Permaneceram em silencio para não chamar a atenção dos autores e só saíram quando a Polícia liberou, mandando todos saírem de cabeça baixa. “O que a gente passou vai continuar. Qualquer barulho já deixa a gente em alerta. Dá medo, né?”, emenda Maimby.

A aluna Maimby Alecx, que sobreviveu ao massacre.
A aluna Maimby Alecx, que sobreviveu ao massacre.Caio Castor

Guilherme Marinho de Oliveira, 14 anos, não tem conseguido dormir desde o atentado. Ele foi um dos primeiros estudantes a escapar da escola, pulando o muro. Nos três primeiros dias depois do massacre, vomitava tudo o que tentava comer. O trauma dele é duplo: naquele dia, o pai, Dênis de Oliveira dos Santos, também poderia ter acabado morto. Dênis percebeu a movimentação estranha na escola do filho quando passava casualmente no entorno. Entrou no local cinco minutos depois do início do tiroteio e deu de cara com um dos autores. Era Guilherme Taucci, de 17 anos, que perguntou "o que você tá fazendo aqui?" e disparou três vezes contra ele, mas a arma falhou. A essa altura, o filho enviava mensagem pelo celular para dizer que estava bem, em casa.

Ciente do risco que o pai passou, Guilherme lhe pediu para acompanhá-lo à escola e reencontrar os amigos. “Eu sei que vai ser difícil passar isso, mas a gente tem que se apoiar uns nos outros”, diz ele, que por enquanto não quer mudar de escola. “Agora a gente espera que o Estado tome uma atitude para além do que está fazendo lá dentro. Se eu que sou adulto não consigo esquecer aquelas imagens, imagina as crianças que passaram por esse trauma. Tem que ter um acompanhamento intenso”, defende Dênis, preocupado em manter o filho no local. A mãe, Tatiane, reclama da falta de segurança. No momento em que estavam ali, não havia policiamento. Mas horas depois viaturas da Polícia Militar, que tem feito rondas nas escolas da cidade, passavam no entorno.

Rhillary Barbosa de Souza, 15 anos, estampou os noticiários na última semana pela sua coragem. A estudante usou técnicas de jiu jitsu para desestabilizar um dos autores do massacre e conseguiu abrir o portão que salvou dezenas de alunos. Foi retornando à escola aos poucos. No domingo, andou pelos arredores para entender o que sentia. Na segunda, conseguiu entrar rapidamente para pegar o material escolar, mas saiu depressa porque não se sentiu bem. “O ambiente é o mesmo, e tudo volta na nossa cabeça”, lamenta. Mesmo assim, nesta terça-feira decidiu retornar mais para encontrar os colegas do que por vontade de participar de qualquer atividade.

“Vim pelos meus amigos, para ter certeza que eles estavam bem. E estavam cantando músicas bonitas aqui. A gente não quer estender esse momento de tristeza”, diz. Ela foi acompanhada da mãe, Marilena de Souza, que também quis prestar solidariedade a outras mães. “Eu só quero falar que elas tenham força e fiquem bem porque os filhos dela estavam no lugar certo. A escola é o lugar do jovem. Foi uma fatalidade o que aconteceu, e elas precisam se fortalecer”, finaliza.

Terceiro adolescente é um dos mentores do crime, dizem investigadores

Os investigadores afirmam estar convencidos de que o adolescente apreendido nesta terça-feira participou do planejamento do ataque em Suzano e dizem que ainda tentam entender porque ele não estava no dia do massacre. Outras chaves em aberto são a origem da arma de fogo utilizada e a eventual participação de outras pessoas no crime. A internação do menor foi solicitada à Justiça com o aval do Ministério Público após a conclusão de um relatório com novas provas nesta segunda-feira. Essas provas estão sob sigilo.

O delegado de Suzano, Alexandre Henrique Augusto Dias, informa que a Polícia colheu provas de conteúdo cibernético que mostram que um terceiro adolescente participou do planejamento do delito. Ele teria comprado objetos usados no crime, além de participar na idealização. “As investigações indicam que o adolescente apreendido era mentor do crime, junto com o Guilherme”, declarou, em entrevista coletiva nesta terça-feira. O adolescente, segundo o delegado, não tem antecedentes criminais e as autoridades tentam estudar o perfil psicológico dele, ainda sem resultados. “Ele é uma pessoa fria, isso eu posso afirmar com certeza”, disse o delegado.

O menor deverá ficar sob internação durante 45 dias. Nesse período, as investigações nortearão o Ministério Público, que poderá pedir sua condenação ou absolvição. Caso seja condenado, o adolescente poderá permanecer até três anos sob apreensão. O delegado Alexandre Henrique também disse ter recebido os resultados do laudo necroscópico, que conforma que um dos adolescentes que atacaram a escola Raul Brasil atirou no comparsa e depois em si mesmo.

O promotor Rafael Ribeiro disse, durante a coletiva, que os jovens que têm exaltado atentados terroristas a escolas pela internet estão sendo monitorados e serão responsabilizados criminalmente.

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