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Silvia Federici: “O feminismo não é uma escada para a mulher melhorar sua posição”

A filósofa e escritora feminista Silvia Federici fala sobre as barrigas de aluguel, o capitalismo e a violência contra as mulheres

A ativista italiana Silvia Federici durante uma conferência na Espanha em abril de 2018.
A ativista italiana Silvia Federici durante uma conferência na Espanha em abril de 2018.Cabalar (EFE)
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Não é raro que onde ela esteja apareçam os avisos de “ingressos esgotados”. Silvia Federici (Parma, 1942) está no Brasil para o lançamento de seu livro O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista (Editora Elefante, 2019) — no dia 7 de outubro, estará em Salvador, e a busca por ingressos para sua conferência em São Paulo, realizada nesta terça-feira, fez jus a sua fama. Traz, com sua voz, uma luta que remonta a décadas atrás. Nos anos setenta, a autora de Calibã e a Bruxa impulsionou uma campanha junto a outras companheiras para exigir um salário para o trabalho doméstico. Trabalhos não remunerados e sem visibilidade, que, segundo argumenta a filósofa, escritora e ativista feminista, foram imprescindíveis para o desenvolvimento e a prosperidade do capitalismo. Ela conversou com o EL PAÍS em março, durante uma visita à Espanha.

Pergunta. Pode-se ser feminista e não estar contra o capitalismo?

Resposta. Não. Não se pode. O feminismo não é uma escada para que a mulher melhore sua posição, que entre em Wall Street, não é um caminho para que encontre um lugar melhor dentro do capitalismo. Sou completamente contrária a esta ideia. O capitalismo cria continuamente hierarquias, formas diferentes de escravização e desigualdades. Então, não se pode pensar que sobre esta base se possa melhorar a vida da maioria das mulheres, nem dos homens. O feminismo não é somente melhorar a situação das mulheres, é criar um mundo sem desigualdade, sem a exploração do trabalho humano que, no caso das mulheres, se transforma numa dupla exploração.

P. Considera que o movimento feminista, para chegar a mais pessoas, corre o risco de se despolitizar?

R. Que tantas mulheres saiam à rua é fundamental. Isso nos dá confiança e é um sinal de mal-estar, de desejo de mudar as coisas. Por isso me parece muito positivo. O desafio hoje é como vamos redirecionar essa energia. É preciso impulsionar programas, propostas, debates. Temos que concretizar o que queremos, o que vamos pedir, o que se pode fazer. Acredito que toda esta energia que sai da rua tem que começar um processo de definição. Assim é como vai se solidificar e não vai se perder.

P. O movimento Me Too recebeu críticas, por exemplo por parte de Tarana Burke, por ficar na denúncia, mas não aprofundar as causas da violência contra as mulheres. O que pensa a respeito?

R. A imprensa se ocupou muito delas, mas as feministas estão há anos e anos denunciando o assédio sexual, sobretudo em relação ao local de trabalho. Agora a imprensa descobre isso, porque são mulheres de Hollywood. Mas o assédio sexual é estrutural na relação entre homens e mulheres na sociedade capitalista. Estas sempre tiveram uma situação econômica mais precária, sempre foram mais dependentes deles e se viram obrigadas a negociar serviços sexuais. Isto continua hoje, embora a mulher tenha tido mais acesso ao trabalho assalariado.

Há toda uma história de mulheres que precisam vender seu corpo, não somente na prostituição, em todas as profissões. Não ver este aspecto cultural é uma mistificação. Há uma grande divulgação, mas não vai à raiz do problema. Um exemplo simples, as garçonetes nos Estados Unidos vivem das gorjetas e ganham muito pouco. Elas sabem que sua postura sexual com os clientes interfere. Há algumas que me contaram que no fim de mês, quando precisam pagar o aluguel, se expõem mais, porque a gorjeta sobe. Esta contínua venda sexual do corpo é parte de uma situação econômica histórica. Se não denunciarmos estes casos estamos distorcendo.

P. Você disse numa entrevista que pode ser pior a exploração do cérebro que a exploração de seu corpo, algo que não agradou às feministas abolicionistas…

R. Na sociedade capitalista, as mulheres sempre tiveram um acesso muito frágil ao sustento, sempre precisam vender seu corpo. Não compreendo a postura das feministas que isolam a prostituição como uma coisa particularmente degradante, e não veem as milhares de formas de degradação às quais as mulheres estão sujeitas. Não entendo, parece-me que penaliza sobretudo aquelas mais pobres, que são aquelas que mais necessitam recorrer à prostituição. Por isso digo que nesta sociedade em que tudo se vende é pior vender seu cérebro, sua integridade moral e intelectual, não só que uma mulher venda sua vagina.

Há mulheres que se casam com homens não porque os amam, mas porque é uma solução econômica, ou que são maltratadas e se veem na obrigação de fazer sexo com eles. Por que não se quer ver tudo isto? Se sou abolicionista, sou com todas as formas de exploração do trabalho humano. Este é o objetivo para mim, que não devemos nos vender de maneira nenhuma, que se pode viver em uma sociedade na qual a venda de nosso corpo, coração, cérebro ou vagina não seja necessária.

P. Sobre as barrigas de aluguel, pode-se ser mãe ou pai a qualquer preço?

R. É uma abominação. Não se vende somente um útero, vende-se também um bebê. Não se pode vender outra pessoa. A gestação sub-rogada é produzir uma pessoa somente para vendê-la, sem responsabilizar-se por ela. Nos Estados Unidos há um mercado subterrâneo não regrado de famílias que têm bebês subrogados que nascem com malformações, o produto não é perfeito, ou não é do sexo desejado, e os fazem circular pela Internet.

Há mulheres que se dizem feministas que apoiam isso, como a capacidade das mulheres de decidir sobre seu corpo. E há outras que legitimam dizendo que dá aos casais de homens a possibilidade de serem pais, mas a paternidade não é um direito a qualquer preço.

P. Ao chegar à Espanha, começou sua visita por Valladolid. Lá denunciou um episódio da história pouco conhecido, que às vezes é mencionado como um fato folclórico: a perseguição e matança de mulheres acusadas de serem bruxas na Idade Média. Há novas caças às bruxas hoje em dia?

R. Sim. Mulheres acusadas de serem bruxas são perseguidas em países da África, em partes da Índia e em Papua-Nova Guiné. Têm sido mortas sobretudo mulheres mais velhas e solteiras. Já escrevi sobre isto, parece-me claro que está conectado com a globalização, com a extensão da organização capitalista, a desapropriação das terras comunitárias, além da chegada de seitas evangélicas e pentecostais, que falam de Satanás, do pecado e dizem que se você é pobre é porque tem problemas ou porque tem gente na sua comunidade que conspira contra você. Há mulheres que foram enterradas vivas, queimadas. No norte de Gana há campos de concentração onde se refugiaram mulheres acusadas de serem bruxas e que foram expulsas de seus povoados.

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