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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Grupos que sustentam Maduro serão principal desafio a qualquer futuro governo na Venezuela

É erro grave presumir que queda de Maduro e promoção de eleições livres seriam garantia para resolver problemas do país vizinho

Oliver Stuenkel
Venezuelanos coletam água no Rio Guaire, em Caracas.
Venezuelanos coletam água no Rio Guaire, em Caracas.Fernando Llano (AP)
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Nos últimos anos, a maioria dos comentaristas internacionais cometeu dois erros ao analisar a situação da Venezuela. Em primeiro lugar, subestimaram Nicolás Maduro, presidente desde 2013, erroneamente presumindo que ele seria incapaz de se manter no poder por muito tempo. Por exemplo, em 2017, o analista Ian Bremmer previu que Maduro cairia em breve, argumentando, entre outras coisas, que o presidente não tinha o carisma de Hugo Chávez. Ignorou, porém, o fato de que carisma raramente é decisivo para prever quanto tempo um ditador permanece no cargo. Com o apoio das Forças Armadas, da polícia e das milícias informais, a estratégia destrutiva, porém sofisticada de Maduro permitiu-lhe sobreviver apesar de arruinar a economia do país e levar quase 10% da população a fugir. Embora esteja fragilizado pela pressão internacional, Maduro ainda pode contar com o apoio do aparato de segurança venezuelano.

Portanto, não podemos descartar a possibilidade de Maduro se converter no Mugabe da Venezuela. O ditador africano governou o Zimbábue de 1980 a 2017 e quebrou seu país, até a década de 1990 um dos mais prósperos do continente. Nesse caso, Maduro se manteria no poder, e a Venezuela se tornaria um Estado falido cada vez mais isolado do resto do mundo, com um exército corrupto controlando os poucos recursos que restam. Casos similares têm demonstrado que o caos e a miséria podem, paradoxalmente, acabar fortalecendo seus governos, pois a situação força as pessoas a se concentrarem na sobrevivência ou na fuga, reduzindo o número daqueles que têm meios para protestar. Na Venezuela, as sanções econômicas ainda dão ao governo a desculpa ideal para culpar atores externos, apesar de a crise econômica ter começado muito antes das sanções impostas pelos Estados Unidos.

O segundo erro de muitos analistas é acreditar que a estratégia de destituir Maduro e organizar eleições livres resolveria todos os problemas da Venezuela. Nada poderia estar mais longe da realidade. Ainda que o fim do chavismo seja uma condição necessária, ele não é suficiente para reconstruir o país. Afinal, quem vencer Maduro enfrentará um problema de extrema complexidade: como lidar com e assegurar o apoio dos diferentes grupos armados que hoje desfrutam de uma forte influência política e vastos privilégios econômicos?

Apesar de a comunidade internacional se referir às "Forças Armadas venezuelanas" como um grupo coeso, Maduro criou, na verdade, uma rede de facções cujos incentivos e interesses “não podem ser abordados com uma única estratégia”, como recentemente observou o cientista político Javier Corrales. Como ele mostra, três dessas facções se destacam.

Primeiro, as Forças Armadas (que incluem, entre outros, a temida Guarda Nacional Bolivariana e a Força Aérea) são o grupo que mais se assemelha a um exército tradicional, mas seus generais hoje controlam tanto a economia legal (incluindo empresas estatais) quanto a ilegal (como o tráfico de drogas). Eles estão interessados em manter sua riqueza e obter ampla anistia que os proteja de processos judiciais caso o governo Maduro caia.

Segundo, a Polícia Nacional Bolivariana (PNB) e, entre seus diversos segmentos, as Forças de Ações Especiais (FAES) atuam como verdadeiro esquadrão da morte, pronto a atacar adversários políticos e até a extorquir viajantes na estradas, como pode testemunhar qualquer pessoa que tenha viajado de carro pelo país ao longo dos últimos anos. Tanto o primeiro quanto o segundo grupo incluem elementos altamente ideologizados, que genuinamente acreditam na Revolução Bolivariana — e estariam dispostos a pegar em armas no caso de uma intervenção militar estrangeira.

O terceiro grupo são as milícias, conhecidos como "colectivos", civis (muitas vezes adolescentes) pouco organizados e sem hierarquia, que receberam armas, motocicletas e alimentos do regime para atacar manifestantes e criar uma atmosfera generalizada de terror.

Tanto o segundo quanto o terceiro grupo fazem o serviço sujo do regime, mas a diferença entre eles é que os “colectivos” sabem que não se beneficiarão de nenhuma anistia. Como qualquer grupo mercenário, eles não têm ideologia, mas representarão um grande desafio para quem quer que suceda Maduro. A menos que possam ser rapidamente integradas à economia formal — um cenário altamente improvável —, as milícias serão absorvidas pelo crime organizado, com consequências diretas para a estabilidade do país.

Por isso, o sucessor de Maduro precisará ser, acima de tudo, um líder pragmático disposto a frustrar expectativas pouco realistas da população e da comunidade internacional. Ainda deve considerar, segundo Corrales, admitir o papel-chave do aparato de segurança oficial em um governo de transição e mesmo posterior. Isso inclui adotar uma política de anistia ampla, que inevitavelmente geraria forte resistência entre muitos na Venezuela e no exterior, defensores de uma transição mais “limpa” para a democracia. Reorganizar as Forças Armadas e a Polícia Bolivariana, assim como encontrar uma solução para os "colectivos", levará pelo menos uma década e exigirá sistemática ajuda externa.

É aqui que as Forças Armadas sul-americanas terão um papel crucial. Idealmente, o colapso da Venezuela deveria marcar o início de uma cooperação mais ampla das Forças Armadas na região, a qual poderia envolver, entre outras iniciativas, exercícios militares conjuntos, missões coordenadas para lidar com desastres naturais e participação mista em missões de paz da ONU. O objetivo deveria ser aumentar a pressão sobre as Forças Armadas da Venezuela para permanecer dentro de seus quartéis sob qualquer futuro governo civil.

Embora essa cooperação tenha apenas impacto limitado e indireto nas Forças Armadas venezuelanas, é a melhor contribuição que o Brasil e seus vizinhos poderiam dar à Venezuela no longo e difícil caminho à redemocratização.

Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo, onde coordena a Escola de Ciências Sociais em São Paulo e o MBA em Relações Internacionais. Também é non-resident fellow no Global Public Policy Institute (GPPi) em Berlim e membro do Carnegie Rising Democracies Network.

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