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Aumentar impostos dos ricos já não é tabu nos EUA

Alguns democratas propõem novas sobretaxas à parcela com renda mais alta, uma ideia que seria impensável antes da crise

Pablo Guimón
A deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez
A deputada democrata Alexandria Ocasio-CortezALEX WONG (GETTY IMAGES)
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O extraordinário momento político que os Estados Unidos de Trump vivem atualmente leva ideias antes marginais a ocuparem o centro do debate. Talvez não seja surpreendente que, nos compassos iniciais das superpovoadas primárias democratas que decidirão o rival do heterodoxo presidente em 2020, alguns candidatos falem de aumentar drasticamente os impostos dos ricos. O chamativo é que essas propostas, condenadas ao escárnio há não muito tempo, agora suscitem um amplo respaldo acadêmico, midiático e popular. Ou que os bilionários discutam em Davos as ideias de política fiscal de uma jovem de 29 anos, a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez, que há poucos meses servia comida mexicana num pé-sujo de Manhattan.

“Há uma sensação de que os ricos dominam injustamente a sociedade, e a tendência à desigualdade está se pronunciando”, opina William Gale, codiretor do Centro de Política Fiscal, um think tank apartidário. “Os políticos progressistas tentam se distanciar dos interesses dos ricos. Em círculos acadêmicos, o sentimento é ambíguo. Há estudos que apoiam um imposto sobre a riqueza, mas outros acham uma significativa reação fraudadora.”

A senadora e presidenciável democrata Elizabeth Warren propõe um imposto às grandes fortunas, uma taxa que nunca existiu nos EUA. Bernie Sanders, senador independente que disputa a preferência da ala esquerdista do partido, promete um imposto de 77% sobre as heranças dos mais ricos. E Ocasio-Cortez, que não está nas primárias, mas impulsiona uma pauta muito social no Congresso, fala de duplicar a alíquota máxima do imposto de renda, que chegaria a um valor entre 70% e 80%.

As propostas foram tachadas de “economicamente analfabetas” pelo principal assessor econômico da Casa Branca, Kevin Hassett, mas suscitaram inflamadas defesas de outros analistas pouco suspeitos de analfabetismo. A ideia de Ocasio-Cortez, ironizou no The New York Times o Nobel de Economia Paul Krugman, “é claramente uma loucura, verdade?”. “Quem acredita que faz sentido? Só gente ignorante como Peter Diamond, premio Nobel de Economia e talvez o maior especialista do mundo em finanças públicas (...). E é uma política que ninguém jamais implementou, além dos EUA nos 35 anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, que incluem o período mais bem-sucedido de crescimento econômico da nossa história”, acrescentou.

O temor de que uma alta tributária desestimule o crescimento é “exagerado”, segundo Gale. “Mas depende da política aplicada, e há maneiras muito ruins de fazer isso”, adverte. “Os indícios apontam que o nível tributário não tem muito impacto no crescimento. Os dados mostram enormes mudanças nos impostos que quase não afetam os indicadores de crescimento. Desde 1960 a 2010, a alíquota máxima caiu em mais de 40 pontos nos EUA, e praticamente não variou na Espanha e na Alemanha. Entretanto, os índices médios de crescimento nos três países foram quase idênticos.”

As pesquisas revelam que três em cada quatro eleitores apoiam a elevação dos impostos sobre os ricos, uma tendência constante nos últimos 25 anos, que hoje abrange inclusive eleitores republicanos. Segundo um levantamento de janeiro do canal conservador Fox News, a maioria dos norte-americanos é partidária de subir as taxas para quem ganha mais de 10 milhões de dólares por ano.

A eficácia da mensagem

“As pessoas não acham má ideia fritar George Soros e Bill Gates em impostos”, defende Mike Tanner, do Instituto Cato, um think tank  libertário de centro-direita. “O público é receptivo aos aumentos desde que o limite fique acima do seu nível de renda. Os republicanos dirão que os democratas falam de sobretaxar os ricos, mas no final vão atrás da classe média. Será interessante ver quem é mais eficaz na hora de transmitir sua mensagem.”

O fato é que o debate econômico se abriu enormemente. Antes da Grande Recessão, era impensável que alguém iniciasse uma corrida presidencial a sério definindo-se, como Sanders em 2016, como um “socialista democrático”. A desigualdade e a concentração de riqueza levam a questionar certezas de política fiscal que pareciam intocáveis.

Na atualidade, o caráter progressivo do sistema tributário norte-americano é relativo, e ainda mais desde a grande redução de impostos de Trump, que os democratas qualificaram como um presente histórico aos mais ricos. “Entre 1979 e 2015, a renda domiciliar dos 1% mais ricos subiu 233%. Os impostos federais para esse coletivo caíram 2%, e ainda mais com a redução fiscal de Trump”, diz Gale.

Mas Trump deu aos democratas a oportunidade de pensar grande. Um presidente que detonou muitos dogmas republicanos deixa os democratas tentados a fazer o mesmo. Reabriu os acordos mais sólidos, desatou guerras comerciais, de modo que os democratas não precisam se preocupar em deixar o mundo empresarial nervoso: o presidente já faz isso.

Arrecadar 1% do PIB por ano

O entusiasmo com a taxação dos mais ricos nos Estados Unidos tem suas raízes teóricas nas pesquisas feitas nas duas últimas décadas por economistas que questionam o consenso neoliberal e alertam contra a excessiva concentração da riqueza, como Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman.

Estes dois últimos, professores da Universidade de Berkeley, apoiam a proposta da senadora Elizabeth Warren para criar um imposto sobre grandes fortunas, e dão cifras: com uma taxa de 2% sobre domicílios com um patrimônio superior a 50 milhões de dólares (189 milhões de reais), e 1% adicional para aqueles com valores superiores a um bilhão (3,77 bilhões de reais), em 10 anos seriam arrecadados 2,75 trilhões de dólares (mais de 10 trilhões de reais), ou 1% do PIB por ano.

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