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John Keane: “Há certa moda de falar em crise da democracia”

Cientista político australiano e especialista em democracias fala do assunto político que mais o preocupa: o crescimento dos populismos nacionalistas

Ignacio Fariza
John Keane no México DF, em novembro de 2018.
John Keane no México DF, em novembro de 2018. Leonardo Álvarez

O cientista político australiano John Keane (1949) é um dos maiores teóricos dos sistemas políticos. Com seu cabelo grisalho e revolto, acaba de lançar a tradução ao espanhol do seu livro Vida e Morte da Democracia (que, no Brasil, saiu pela Edições 70). A conversa se estende por mais de duas horas, mas ele poderia continuar por outras duas: uma ideia o leva a outra, e essa outra puxa mais outra. Quase não é preciso fazer perguntas. Esse professor da Universidade de Sydney, muito preocupado com o crescimento dos populismos nacionalistas e profundamente reacionários, considera-se um progressista, mas tem “um problema”: quando está com gente de esquerda se considera de direita, e quando está rodeado de conservadores se sente de esquerda.

Pergunta. O que a chegada de Trump à presidência dos EUA representou para a democracia?

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Resposta. Vivemos tempos shakespearianos, disso não cabe dúvida, e a eleição dele precisa ser enquadrada nesse contexto. Sua figura representa um sinal de mudança de fase histórica; é o sintoma da disseminação de uma grande frustração em partes importantes da sociedade norte-americana: a classe média e trabalhadora, que não tem nenhuma segurança sobre seu futuro. Calcula-se que 40% dos norte-americanos de 18 a 60 anos experimentarão pelo menos um ano de pobreza ao longo de sua vida. Trump entendeu isso, e aí centrou toda sua retórica demagógica. Mas enquanto ele desempenha o papel de salvador dessas pessoas, foi prejudicando as instituições de controle. Trump é justamente isto e, chegados a este ponto, espero sua reeleição.

P. Que futuro aguarda os EUA?

R. Como disse o ex-vice-chanceler alemão [Joschka] Fischer, a consequência de tentar que os EUA “voltem a ser grandes de novo” será tornar a China grande de novo. Ele está fortalecendo o poder chinês no Irã, em todo o Sudeste Asiático e, em geral, em todo o mundo, enquanto Washington está em lento declínio. Seu poderio militar é inquestionável, mas já não ganha guerras: basta ver o que aconteceu no Iraque e no Afeganistão, ou sua marginalização como ator na Síria. A China está alcançando os EUA a uma grande velocidade no aspecto econômico, em energias limpas e em inteligência artificial. É o princípio da decadência de um império e o surgimento de outro.

P. É possível reparar o dano causando durante sua presidência?

R. Não sabemos como terminará, mas o dano à democracia já aparece: os ataques à imprensa, o golpe ao Poder Judiciário… Há uma nuvem escura sobre os EUA. E quanto mais tempo transcorrer, mais difícil será pôr fim à guerra civil de baixa intensidade em torno da identidade norte-americana. É muito mais fácil e rápido danificar e destruir uma democracia que reconstruí-la ou preservá-la.

“Permitir que o Google e o Facebook regulem a si mesmos é como deixar uma cabra cuidar do jardim”

P. Ao mesmo tempo, você acredita que somos muito pessimistas ao falar do futuro da democracia.

R. Há certa moda de falar em crise da democracia no mundo, e tenho dúvidas sobre o uso da palavra “crise”, que tem conotações apocalípticas, quase religiosas. Não está sendo levada em conta a resiliência e a vitalidade das democracias atuais, e se subestimam as inovações que esta suposta crise desencadeou. Penso em cidades como Barcelona, Sydney e Amsterdã, que são laboratórios para o autogoverno, que estão apostando no transporte público e em soluções ambientalmente sustentáveis, e que estão experimentando com conceitos como a renda básica. Estes brotos verdes são parte da realidade contemporânea; o problema é que a maioria dos intelectuais e jornalistas tente a se concentrar na crise e evita estas outras tendências.

P. Mas esses brotos verdes estão se dando só em algumas cidades, e não em escala nacional. Até quando durará o momento doce dos populismos nacionalistas?

R. É impossível saber, então antes de fazer previsões prefiro defini-lo: o populismo é um estilo de fazer política estruturado em torno de falar diretamente às pessoas, que tem um grande líder, um caudilho, e um oponente ou oponentes aos quais confrontar, que costuma ser chamado de establishment. E que degrada instituições de monitoramento, tribunais, meios de comunicação e outros órgãos de defesa da integridade. Tudo isso adornado por certo nível de normalização da violência, de nacionalismo, de sentido da territorialidade e de clientelismo. Este último é muito claro no caso de Trump: chegou ao poder com a promessa de “drenar o pântano” e acabou nomeando o Gabinete com a maior concentração de milionários da história. O populismo é uma doença autoimune da democracia: exige condições democráticas para florescer (liberdade de expressão, de reunião, acesso aos meios de comunicação, multipartidarismo…), mas sua lógica é profundamente antidemocrática, destrói os órgãos de controle e marginaliza setores importantes da sociedade.

P. Você diz que falar de populismo de esquerda é um erro.

R. É um oximoro. Não faz nenhum sentido: o populismo em que Chantal Mouffe pensa quando fala de "populismo de esquerda" – Perón, o primeiro [Hugo] Chávez…– é uma fantasia. O populismo é de direita na medida em que é antidemocrático.

P. Sobreviverá a democracia tal como a conhecemos hoje?

R. Não sei. O que está claro é que ela não tem o futuro garantido. O novo populismo é uma reação alérgica à democracia monitorada. E quer enfraquecê-la, quando não diretamente liquidá-la.

P. Por que essa alergia às instituições de controle?

R. Estamos num momento de grande fragmentação e incerteza e com milhões de cidadãos irritados. É uma combinação de várias forças: a desigualdade – com uma disparidade insustentável entre ricos e pobres, e com a marginalização de muitos setores da população –, a migração, o multiculturalismo visto como uma ameaça... Isso é pólvora para os populistas. Eles entenderam isso muito bem.

P. Você não menciona as redes sociais.

R. Não é o fator principal: a desigualdade, as bolhas financeiras e a insatisfação com o sistema partidário são muito mais importantes. As redes são um a mais. Nesta era de abundância comunicacional, fazer as coisas de forma privada é muito mais difícil, e isso é bom e é ruim ao mesmo tempo: também se está pondo em risco a privacidade, e facilita-se a difusão das notícias falsas. A multiplicação do conhecimento e a distribuição maciça de informação levam a opinião pública a pensar que o mundo é complexo e a não aceitar a mentira e a corrupção, mas as redes sociais também estão sendo usadas para fazer justamente o contrário: prolifera a informação não verificada, a utilização comercial do sensacionalismo e a sujeira informativa.

P. Deveriam ser reguladas?

R. Nos anos noventa, achava-se que uma Internet sem travas nem regulações permitiria derrubar as fronteiras e faria a democracia florescer. Anos depois, vimos como nesse jardim floresceram também flores venenosas: o discurso do ódio, a xenofobia, a manipulação… São tendências que contrariam a utopia digital do pluralismo que era vendida. Governos e sociedade civil têm que abordar a questão de como regular estes fluxos de informação: necessitamos de um acordo digital que permita a conexão de todos os cidadãos, mas que também traga estabilidade a este ecossistema. Não acredito que a solução seja a autorregulação dos gigantes digitais: permitir que o Google e o Facebook regulem a si mesmos é como deixar uma cabra cuidar do jardim.

P. Vivemos numa sociedade informada ou inundada de informação?

R. Eu não gosto do termo “cidadãos bem informados”, entendido como alguém que sabe tudo sobre tudo. Prefiro falar de “cidadãos sábios”: humildes, democratas, conscientes de que nem eles nem as autoridades sabem tudo.

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