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Tribuna
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Proposta de Moro para criminalizar caixa 2 não cumpre o que promete: ser ferramenta de combate à corrupção

Projeto do pacote anticrime carece de inovação sobre a legislação atual e deveria contemplar as hipóteses mais graves de doação eleitoral proibida

O ministro Sérgio Moro durante a apresentação do pacote anticrime.
O ministro Sérgio Moro durante a apresentação do pacote anticrime.UESLEI MARCELINO (REUTERS)
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A proposta de criminalização autônoma do chamado “caixa dois” incluída no “Pacote Anticrime”, formulado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, não será o primeiro projeto legislativo a respeito. Tal como antes, a atual proposta não cumpre o que promete: ser uma ferramenta de combate à corrupção. A criminalização do “caixa dois” eleitoral já constava do PL 4850/16, de relatoria do então deputado Onyx Lorenzoni, projeto esse que consolidava as chamadas “10 medidas contra a corrupção”, elaboradas pelo Ministério Público Federal. E realmente, sem nenhuma coincidência, a atual proposta é quase idêntica à formulação constante do PL 4850 — a rigor, a proposta de Moro aproveita elementos tanto da versão original do PL quanto de seu substitutivo.

A nova proposta acresce um art. 350-A ao Código Eleitoral (Lei 4.737/1965), logo após, portanto, o art. 350, que incrimina a conduta chamada de “falsidade ideológica eleitoral”. É exatamente ao art. 350 do Código Eleitoral que até então muitas vezes recorrem o Ministério Público e os magistrados brasileiros para punir a prática do “caixa dois eleitoral”, especialmente quando não se consegue provar o cometimento de corrupção. Ocorre que esse tipo penal — “falsidade ideológica eleitoral” — não apreende com exatidão a conduta de “caixa dois eleitoral” e prevê uma pena relativamente baixa.

A conduta básica que se pretende agora punir é “arrecadar, receber, manter, movimentar ou utilizar qualquer recurso, valor, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral”, sendo prevista uma pena de reclusão de dois a cinco anos. Os parágrafos primeiro e segundo estendem a punibilidade a “quem doar, contribuir ou fornecer recursos, valores, bens ou serviços nas circunstâncias estabelecidas no caput” e aos “candidatos e os integrantes dos órgãos dos partidos políticos e das coligações quando concorrerem, de qualquer modo, para a prática criminosa”.

A respeito do conteúdo da proposta, cabe formular duas perguntas: 1) a proposta traz realmente uma inovação ao ordenamento jurídico brasileiro?; 2) essa inovação é bem-vinda e/ou foi bem concretizada?

O cidadão que se depara com essa proposta poderia perguntar-se: o “caixa dois eleitoral” já não é um crime punível no Brasil? Ou, ainda de modo mais específico, o “caixa dois eleitoral” não é corrupção, já punível conforme os arts. 317 e 333 do Código Penal? A conduta de manter uma contabilidade paralela no âmbito de um partido político pode, dependendo do caso concreto, constituir um ato preparatório ou o exaurimento de um ato de corrupção, mas, por si só, não realiza os tipos penais da corrupção passiva e da corrupção ativa. A corrupção constitui-se por um pacto ilícito envolvendo o oferecimento ou a solicitação de uma vantagem indevida a um funcionário público, em razão do exercício de suas funções típicas (corrupção passiva) ou para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício (corrupção ativa). Ou seja, no Brasil, país que não conhece o delito de administração desleal ou infidelidade patrimonial, a conduta, em si, de manter valores paralelamente à contabilidade oficial de um partido não é crime. Por isso, constitui um disparate, como infelizmente se ouviu e até hoje se ouve de alguns congressistas, falar em “anistia” do crime de “caixa dois eleitoral”. Não se pode anistiar o que não é crime. As condutas pretéritas obviamente não poderão ser punidas com base na nova lei, mas por força da proibição constitucional de retroatividade da lei penal (art. 5º, XL, da Constituição Federal).

Como afirmado anteriormente, o anseio de criminalização do “caixa dois eleitoral” não é novo e parece não contar com muitos opositores. Em geral, considera-se a nova incriminação uma importante ferramenta na “luta contra a corrupção”. Não é à toa que a atual proposta se origina das famosas “10 medidas contra a corrupção”, do MPF. No entanto, do modo que está redigido o tipo penal ora proposto, não é possível perceber qualquer conexão normativa com um delito contra a Administração Pública, cujo principal expoente é o crime de corrupção. A incriminação de manutenção de contabilidade paralela em partido político assemelha-se muito mais a uma infração administrativa-eleitoral, agora alçada a delito, consistente na sonegação à autoridade fiscalizadora (a Justiça Eleitoral) das reais informações contábeis. Se, no entanto, como se supõe, o objetivo é prevenir a realização de condutas próximas ou antecipatórias da corrupção, a proposta teria de ser redigida diversamente, de modo a contemplar as hipóteses mais graves de doação eleitoral proibida, como as de grande porte ou realizadas por grandes corporações. Afinal, são esses tipos de doações que constituem a antessala da corrupção e que são capazes de contaminar a formação da atividade legislativa. Exemplos de regulações nesse sentido não faltam no direito comparado, como na Espanha e em Portugal.

Em suma: a Proposta de criminalização do caixa dois eleitoral seria, de fato, uma inovação no ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, tal inovação, tal qual atualmente formulada, não é adequada para cumprir os propósitos enunciados.

Adriano Teixeira é professor da FGV-SP, doutor pela Universidade Ludwig-Maximilian, de Munique.

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