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A fatura de um Brexit sem acordo: de aeroportos paralisados à falta de comida

Se o Reino Unido não conseguir negociar sua saída com a União Europeia até o final de março, podem faltar desde alimentos até medicamentos, com a paralisação da principal fronteira do país em Dover

Manifestação contra o Brexit diante do Parlamento britânico.
Manifestação contra o Brexit diante do Parlamento britânico.HANNAH MCKAY (REUTERS)

Se o bom senso não impedir, o Reino Unido pode abandonar a União Europeia (UE) sem acordo em 29 de março. Muitos acreditam que é improvável, mas o mesmo era dito há meses e continua sendo uma possibilidade devido à divisão tribal que domina a política britânica desde o referendo do Brexit, em junho de 2016.

Se isso acontecer, de um dia para outro a economia britânica deixará de fazer parte do mercado único e a união aduaneira europeia será regida pelas normas da Organização Mundial do Comércio (OMC). As exportações deverão pagar tarifas e submeter-se a controles de fronteira; muitos produtos frescos enfrentarão controles sanitários para entrar na UE; as montadoras de veículos podem ficar paralisadas em questão de dias por falta de componentes; os cidadãos do continente perderão o direito de circular e trabalhar livremente pelo Reino Unido e vice-versa; as empresas financeiras britânicas perderão o passaporte que agora lhes permite atuar em todos os países da UE; os aviões não poderão voar entre Reino Unido e UE e mais outros 17 países que têm acordos com o bloco; os profissionais estarão em um limbo legal, sem saber se seus cargos continuam tendo validade; teme-se a escassez de alimentos e de medicamentos; será estabelecida a incômoda fronteira física entre Irlanda do Norte e República da Irlanda... Entre outros milhares de casos.

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É possível que algumas dessas coisas jamais aconteçam. Por exemplo, é impensável que o tráfego aéreo chegue a ser paralisado. Mas outras sim, sem dúvida, devem ocorrer. Como o caso do transporte rodoviário. Um dos pontos chave desse transporte, termômetro do Brexit arbitrário, é Dover, cidade no Sudeste da Inglaterra, onde está localizado o maior porto britânico do Canal da Mancha. Por esse ponto de fronteira entram 17% das mercadorias que chegam ao Reino Unido. Talvez não pareça muito, mas esses 17% são de importância estratégica porque em Dover não chegam barcos com contêiners, mas os chamados roll off-roll on, barcos cheios de veículos (caminhões) que transportam, por exemplo, medicamentos ou itens perecíveis, como frutas e verduras que vêm diariamente da Espanha ou da Holanda. Ou os componentes que fazem o trânsito constante de ida e volta para abastecer as redes de montagem de automóveis, um setor de futuro incerto em função do Brexit.

Cerca de 99% dos 10.000 caminhões que viajam diariamente entre Dover e Calais têm sua origem e/ou destino na UE e demoram dois minutos para ultrapassar os atuais controles de identidade fronteiriços. Segundo a Associação Britânica de Transporte de Fretes, o porto de Dover calculou que dois minutos adicionais de controle por veículo (para as mercadorias) gerariam filas de 17 quilômetros na fronteira.

DATAS-CHAVE

27 de fevereiro. A Câmara dos Comuns vota pela segunda vez o acordo final sobre o Brexit, que foi rejeitado em 15 de janeiro por 432 votos contra 202. Nesse dia, o Parlamento pode se dotar de poderes para proibir um Brexit sem acordo.

21 e 22 de março. Reunião do Conselho Europeu. Última oportunidade para que Theresa May obtenha concessões sobre o acordo. É possível que, na verdade, acabe conseguindo um adiamento do Brexit por 3, 9 ou 12 meses.

25 de março. Dia em que May quer que a Câmara dos Comuns vote pela última vez o acordo final, às vésperas da data teórica do Brexit, com a ameaça de que ou os parlamentares aprovam o acordo ou o Reino Unido sairá da UE sem ele.

29 de março de 2019. É possível que, a esta altura, a Câmara dos Comuns tenha se dotado de poderes para evitar esta última opção, embora o ministro britânico para o Brexit, Stephen Barclay, tenha dito na quinta-feira que o Reino Unido sairá da UE neste dia, com ou sem acordo.

O Brexit sem acordo gera também problemas humanos, como a pequena tragédia dos estudantes britânicos, que não poderão mais desfrutar das delícias intelectuais e sensoriais do programa Erasmus, que tanto ajudou os jovens europeus a se conhecer mais de perto. Ou o desafio que enfrentam as enfermeiras espanholas que trabalham na saúde pública britânica (mais de 3.000, o grupo comunitário mais numeroso depois da Irlanda), para quem esse emprego deixará de contabilizar como experiência profissional quando regressarem à Espanha. Por isso, centenas anunciaram já ao Serviço Nacional de Saúde (NHS) que voltarão. Um problema enorme para os hospitais britânicos, que já têm agora 40.000 vagas não preenchidas. O contratempo tem remédio: um acordo bilateral entre Reino Unido e Espanha. Uma aspiração que é uma constante: igualar pela via da negociação o que o Reino Unido vai perder deixando a UE.

O preço mais alto

Paradoxos da vida, os agricultores britânicos estão entre os defensores mais ferrenhos do Brexit, mas são um dos grupos que vão pagar um preço mais alto se o Reino Unido sair sem acordo. O setor, que gera mais de 110 bilhões de libras por ano (cerca de 500 bilhões de reais) e emprega um em cada oito trabalhadores do país, se vê diante de quatro tipos de problemas: um bloqueio de fato das exportações que pode durar entre seis e nove meses, até que se coloque em marcha os mecanismos de controle sanitário dos produtos; um encarecimento dos gastos devido às altas tarifas que sofre o setor agrícola quando funciona com as regras da Organização Mundial do Comércio; um atraso na cobrança das ajudas diretas que agora recebem por meio da difamada Política Agrícola Comum da UE (PAC) e um mais do que certo encarecimento da mão de obra quando os imigrantes procedentes do continente se virem proibidos de ter acesso ao mercado de trabalho britânico.

A tudo isso podem se somar ainda outros inconvenientes, como a possibilidade de que um desmonte tarifário (que agora existe apenas diante dos produtores comunitários) tenha que se estender por razões legais aos produtos de países terceiros, ou que eventuais acordos comercias com os Estados Unidos acabem sendo assinados ao custo de permitir a entrada de produtos agora proibidos, como frango clorado ou carne com hormônios.

A PESCA NAS MÃOS BRITÂNICAS

Sair da União Europeia sem acordo transformaria o Reino Unido, de um dia para outro, em senhor absoluto de suas riquíssimas áreas de pesca, atualmente compartilhadas com a UE. Algo que inquieta muitos países, principalmente Espanha e França. Calcula-se que 18.000 pescadores e 3.500 embarcações comunitárias podem ser afetados pelo Brexit. Se não houver acordo, mais de 6.000 trabalhadores continentais que hoje dependem do setor pesqueiro britânico podem entrar em greve.

A frota espanhola em águas britânicas (de maioria galega) supera as 140 embarcações: 97 (70 com bandeira espanhola e 27 de propriedade espanhola, mas bandeira britânica) nas áreas de pesca de Gran Sol (Atlântico Norte) e o resto nas Malvinas (Atlântico Sul), onde operam 25 navios com bandeira espanhola e 19 com bandeira inglesa.

O problema para o Reino Unido é que essa soberania recuperada pode ser mais teórica do que real, porque ele precisa chegar a acordos depois do Brexit quase tanto como a frota comunitária. Em primeiro lugar, porque sua própria frota também atua em águas europeias: segundo dados da Aliança de Pesca Europeia, em 2015 a frota da UE 27 que opera no Atlântico Norte fez um terço de suas capturas em águas britânicas, enquanto os britânicos realizaram 20% das suas em águas comunitárias do nordeste do Atlântico. Em segundo lugar, porque quase 70% das exportações pesqueiras britânicas vão para mercados da UE e, sem pacto, será mais difícil e muito mais caro ter acesso a eles.

Um Brexit unilateral pode fazer despencar tanto as exportações como as importações de alimentos, provocando ao mesmo tempo a ruína de muitos agricultores e um desabastecimento que se traduzirá em altas de preços que os consumidores pagarão.

O setor de carnes tem todos os números para estar entre os mais afetados, porque para exportar deverá obter antes um certificado emitido pelo Ministério da Agricultura britânico, que, ao mesmo tempo, deve logo ser homologado pelas autoridades sanitárias de Bruxelas. Os problemas logísticos são também importantes: não há instalações de inspeção na fronteira Dover/Calais, porque agora não são necessárias.

Improvável paralisação aérea

No papel, o tráfego aéreo é outro dos setores mais afetados no caso de o Reino Unido abandonar a União Europeia sem acordo. “É teoricamente possível que em um cenário de não acordo não haja tráfego aéreo entre Reino Unido e a UE a partir de 29 de março de 2019”, admitiu na época o ex-chanceler do tesouro britânico (ministro da economia) Philip Hammond. No entanto, ainda que possível, é muito pouco provável que se chegue a esse extremo. E isso, por três razões.

Uma, o grande peso da indústria aeronáutica britânica (é o maior mercado da UE, e o terceiro do mundo, superado apenas por Estados Unidos e China). Outra, que a paralisação seria caótica para as duas partes. E, terceira, porque, se houver vontade política, é relativamente fácil encontrar fórmulas legais para que continuem em vigor os atuais acordos que garantem a navegação aérea. Isso é impossível, por exemplo, no tráfego de mercadorias.

Londres já anunciou que daria autorização às companhias aéreas europeias para continuar operando como até agora, e espera que haja reciprocidade e os demais países autorizem também a continuidade das operações das companhias britânicas em seus territórios. E já começou a negociar acordos bilaterais com os 17 países aos que voa por meio de acordos comunitários. O primeiro caso foi o dos Estados Unidos, com quem alcançou um acordo bilateral em 28 de novembro passado.

CITY DEPENDE DO PRAGMATISMO DE BRUXELAS

Se há um setor econômico em que o Governo britânico trabalha arduamente para evitar seu colapso caso não haja acordo sobre os termos de saída do Reino Unido da União Europeia, esse é o financeiro. E com razão: o setor emprega mais de um milhão de pessoas e em 2017 gerou 6,5% da riqueza nacional. O Tesouro britânico arrecadou 27,3 bilhões de libras (130,2 bilhões de reais) em impostos dos bancos no ano fiscal 2016-2017, e a City of London Corporation estima que o setor financeiro em seu conjunto (incluindo as seguradoras) gere uma receita fiscal de mais de 70 bilhões de libras (334 bilhões de reais), 11% do total nacional.

Londres joga aqui com uma vantagem muito importante. Enquanto as empresas manufatureiras britânicas dependem muito mais da Europa do que o contrário, no setor financeiro isso não ocorre. O peso britânico é tão grande que as empresas continentais que trabalham atualmente com a City poderiam sofrer tanto quanto ou mais do que as britânicas se houver um Brexit sem acordo.

É por isso que existe a crença generalizada de que a UE tem tanto interesse quanto o Governo britânico em evitar o colapso da City de Londres. De fato, no final do ano passado Downing Street teve de desmentir que já tivesse sido alcançado um princípio de acordo com Bruxelas sobre as futuras relações no setor financeiro, um indício de que as engrenagens da negociação estão muito mais lubrificadas no que se refere ao setor financeiro do que em relação a outras atividades econômicas.

Isso não quer dizer que a City não corra riscos se o Brexit ocorrer sem acordo. No sistema atual, as empresas financeiras do Espaço Econômico Europeu (EEE) desfrutam do chamado “passaporte”, pelo qual toda atividade legalizada em um país é considerada automaticamente legal em todos outros. Esse passaporte será mantido pelo menos até dezembro de 2020 se o Reino Unido sair da UE com um acordo. Até lá, presume-se que já terá sido negociado um acordo de livre comércio entre as partes.

Mas se o Reino Unido abandonar a UE sem acordo, o setor financeiro britânico atuará no exterior conforme as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Ou seja, perderá o passaporte. E suas entidades financeiras deverão ser legalizadas em cada um dos países onde queiram trabalhar.

Isso poderia ser caótico. Por isso, o Reino Unido já anunciou que autorizará as empresas do Espaço Econômico Europeu a atuar em seu território durante um período de três anos depois do Brexit − e permitirá também que as companhias não britânicas continuem fornecendo serviços de compensação bancária (clearing) às entidades britânicas durante três anos. Isso, em si, é muito importante, mas 40% das exportações de serviços financeiros britânicas vão para a UE e ficariam paralisadas se Bruxelas não tomasse medidas recíprocas. A City está nas mãos do pragmatismo de Bruxelas.

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