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A única emergência na fronteira é Trump

Os 3.000 quilômetros da linha que separa os Estados Unidos do México nunca foram tão vigiados, e as cifras de imigração irregular são as mais baixas desde 1971

Pablo Ximénez de Sandoval
Imigrante centro-americano cruza a ponte da fronteira entre Piedras Negras e Eagle Pass, no Texas.
Imigrante centro-americano cruza a ponte da fronteira entre Piedras Negras e Eagle Pass, no Texas.JULIO CESAR AGUILAR (AFP)
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A fronteira entre os Estados Unidos e o México tem mais de 3.000 quilômetros, que vão do Pacífico até o Atlântico – mais ou menos a distância de carro entre São Paulo e Belém. Pode ser atravessada legalmente por 42 portos fronteiriços. Estima-se que um milhão de pessoas a cruzam legalmente nos dois sentidos todos os dias, para trabalhar, estudar ou passear. A fronteira teve épocas de auges de imigração ilegal e problemas de segurança. Mas a última década não foi uma delas.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, vê uma emergência nacional na fronteira. Trump alerta para “uma invasão” de imigrantes irregulares que cruzam sem cessar, sobrecarregando a polícia de imigração. O presidente relaciona esses imigrantes diretamente com o crime violento nas cidades (que está nos patamares mínimos históricos), uma relação que as próprias polícias locais negam e sobre a qual ele não conseguiu fornecer dados. Também considera que a fronteira é a origem da heroína consumida nos EUA, vinculando-a com a crise da dependência de opioides – que não são drogas ilegais, e sim compradas com receita médica. O crime violento e o vício das drogas no país, segundo Trump, são problemas que se solucionam construindo um muro.

No aspecto migratório, Trump parece viver mentalmente nos anos noventa. A fronteira da qual ele fala existiu. No início daquela década, começou a crescer o número de entradas ilegais nos EUA, medidas em detenções. Foi quando o número de pessoas detidas por ano superou o milhão. Na Califórnia, essa realidade levou à reação política contra a imigração que propiciou uma das leis mais duras contra os indocumentados.

O muro fronteiriço com o México

De fato, como diz o presidente, os imigrantes cruzavam maciçamente a fronteira de San Diego em grandes grupos que sobrecarregavam os agentes. Os vídeos ainda estão na Internet. E realmente, como afirma Trump, a maneira de pará-los foi com um muro. As travessias ilegais atingiram o ápice em 2000, quando 1,6 milhão de pessoas foram detidas. Durante a década passada, construíram-se 1.100 quilômetros de fronteira com algum tipo de barreira física. Os projetos, iniciados com Bill Clinton, foram executados e concluídos por George Bush e Barack Obama. Nas grandes cidades que praticamente compartilham ruas com o outro lado (San Diego, Calexico, Nogales, El Paso, Laredo, McAllen e Brownsville), essa barreira é um muro, ou vários, como o que Trump propõe. Já está construído e funciona. Em outros lugares, é apenas uma barreira para veículos ou uma cerca para que o gado não passe.

Esses muros terminam em algum lugar, como mostram aquelas fotos em que de repente o obstáculo termina no meio do campo. São as zonas onde os especialistas em segurança fronteiriça afirmam que não é preciso tampar, e sim ver. Fora das grandes cidades, a fronteira sudoeste dos EUA é inóspita dos dois lados. Cruzar pelo deserto de Sonora ao Arizona pode significar 100 quilômetros a pé, com temperaturas extremas e animais selvagens. Além disso, quase metade da fronteira é demarcada pelo Rio Grande. Fora das grandes cidades do Texas, só se pode fazer um muro em três lugares: no lado mexicano, no lado norte-americano (abrindo mão do rio e expropriando terras) ou no meio do rio. Ninguém antes de Trump havia levado isso a sério. Ou seja: mesmo aceitando que é uma situação de emergência, a solução não seria um muro. A polícia de fronteira sempre reivindicou mais agentes, tecnologia de vigilância e colaboração com o México, não um muro.

As cifras dos últimos anos indicam que o reforço da segurança fronteiriça funcionou. As detenções de imigrantes irregulares caíram notavelmente a partir de 2006 até se estabilizar na faixa entre 300.000 e 400.000 anuais. O primeiro ano de Trump na Casa Branca registrou a cifra mais baixa desde 1971 – 303.916 pessoas. Enquanto isso, o investimento em policiais de fronteira só fez crescer. Em 1992, havia 3.555 agentes na Patrulha Fronteiriça (1,1 milhão de detidos). Em 2000, o ano mais dramático da imigração irregular, havia 8.580 agentes (1,6 milhão de detidos). Ano passado, eles eram 16.605 (300.000 detidos). Trump quer mais 5.000 agentes, algo para o qual não encontrou muita resistência política.

Além da queda na imigração irregular, o que se vê na fronteira há pelo menos cinco anos é uma mudança dramática no perfil desses imigrantes. Em 2014, a polícia fronteiriça se deparou com a chegada de crianças sozinhas vindas da América Central. Mais de 60.000 chegaram naquele verão boreal e geraram uma crise, pois o sistema de detenção não estava preparado para aquilo, e sim para prender homens mexicanos sozinhos – o perfil do imigrante dos anos noventa – até que fossem deportados.

Foram necessários alguns anos para a implantação de um sistema que assumisse as crianças. Isso, sim, foi uma crise na fronteira. Nos últimos dois anos, observou-se um aumento espetacular do número de famílias que chegam juntas da América Central, para as quais o sistema tampouco está preparado. Elas vêm fugindo da violência e da miséria e não querem evitar a polícia, mas pedir asilo. Isso também é uma crise, pois não há logística para processar essas famílias juntas. Calcula-se que cerca de 7.000 pessoas estejam neste momento na fronteira esperando para pedir refúgio.

Em relação às drogas, a grande maioria das apreensões não é feita nas zonas desérticas da fronteira, e sim nos portos de entrada. E a heroína, que Trump cita como emergência nacional, é o que menos se confisca. Em 2017, a Border Patrol interceptou 0,4 tonelada do opioide, contra 4,2 toneladas de cocaína e 390,6 toneladas de maconha (em queda frente às 586 do ano anterior). A preocupação atual das forças de segurança é o aumento da entrada de metanfetaminas (4,7 toneladas apreendidas em 2017, contra 1,6 no ano anterior. Em 2018, tudo indica que a cifra anterior será amplamente superada).

O presidente tem direito de ver esses números como uma emergência nacional. Se alguém realmente considera um objetivo realista conseguir que nem uma única pessoa sequer entre de forma irregular, então 400.000 são muitas. Mas a realidade é que a fronteira está mais bem controlada e tem melhor segurança do que nunca, e nem em seus piores tempos havia sido considerada uma emergência nacional. A fronteira da qual Trump fala não existe.

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