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Como a Rússia de Putin reprime quem protesta

Kremlin endurece as leis que criminalizam qualquer tipo de ativismo contestador, seja na política, defesa ambiental ou movimentos sociais

Anna Pavlikova, processada por ligação com uma organização extremista, no julgamento ocorrido em agosto passado em Moscou.
Anna Pavlikova, processada por ligação com uma organização extremista, no julgamento ocorrido em agosto passado em Moscou.Getty Images
María R. Sahuquillo

A sociedade russa não está mais adormecida e alérgica aos protestos. As grandes manifestações contra a fraude eleitoral em 2011 e 2012 não triunfaram. Entretanto, desde então aumenta o número de passeatas, comícios e exposições críticas na Rússia. Embora ainda frágil, vem se formando um variado tecido social contestatário, que pode ou não estar alheio à política. Organizações de bairro, associações ambientalistas, de defesa dos animais, pelos direitos das mulheres... E, à medida que começa a despontar um tímido olhar crítico – que ferve sobretudo na Internet –, também se fortalecem os métodos para combatê-la. As autoridades adotaram diversos pacotes de leis que podem ser usadas para sufocar qualquer tipo de ativismo e dissidência – tanto nas ruas como nas redes, o grande buraco que o Governo de Vladimir Putin não consegue controlar, embora se empenhe. São normas semelhantes a outras que existem nos países ocidentais, como as que perseguem o discurso de ódio e o extremismo, mas tão amplas que na prática poderiam servir – e servem – para criminalizar qualquer um que protestar.

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Aos olhos da lei, María Motuznaya era uma radical perigosa. Aos 23 anos, essa siberiana loira e espigada foi incluída na lista de extremistas e enfrentou um processo judicial por ofender os sentimentos religiosos e incitar ao ódio. Seu delito foi compartilhar em 2015 uma série de memes na rede social Vkontakte, o equivalente russo do Facebook. Um deles, por exemplo, mostrava três freiras terminando de fumar um cigarro e a legenda: “Vão logo, aproveitem que Deus saiu”.

“Fui vítima de uma situação surrealista. A polícia se apresentou na minha casa, a revistaram e levaram todos os meus aparelhos eletrônicos”, conta por videoconferência. Agora, após um ano e meio de processo judicial, de ataques organizados de trolls e do medo de passar até seis anos e meio presa, seu caso foi arquivado. E ela foi embora da Rússia. Acha que as autoridades a processaram por apoiar ativamente o político oposicionista e blogueiro anticorrupção Alexei Navalni. E que a lei contra o discurso de ódio foi só um pretexto.

A norma é extremamente polêmica. Nos últimos meses, e após processos similares, foi modificada e agora é punível com prisão a partir da segunda violação. “A lei é tão ampla e tão pouco clara que pode ser usada de muitas formas”, observa Ekaterina Vinokurova, do Conselho de Direitos Humanos da Rússia. Com casos como o da jovem siberiana, o número de processados por extremismo disparou nos últimos anos e passou de 656 em 2010 para 1.521 em 2017. “O que aconteceu comigo pode acontecer com qualquer um, mas o que está claro é que eles tentam calar a voz das próximas gerações de eleitores”, afirma Motuznaya.

Um padrão muito semelhante guia a lei que obriga os serviços de mensagens instantâneas a armazenar na Rússia os dados privados de seus usuários, e que criminaliza os organizadores de manifestações não autorizadas com a presença de menores. Idem quanto à norma, atualmente em debate no Parlamento, que basicamente proíbe desrespeitar o Governo, a bandeira, o presidente ou praticamente qualquer autoridade.

Anastassia Shevchenko é a primeira pessoa na Rússia acusada de colaboração reiterada com uma organização indesejável.
Anastassia Shevchenko é a primeira pessoa na Rússia acusada de colaboração reiterada com uma organização indesejável.

Até os grandes protestos de 2011, o Governo fazia uma clara distinção entre ativistas de oposição, como Alexei Navalni e seus partidários, e os cidadãos comuns. Com as novas leis, essa linha é cada vez mais difusa. Sobretudo com o maior descontentamento social devido à crise econômica e às reformas sociais como a das pensões, que levou para a rua cidadãos que nunca antes haviam se manifestado. Houve protestos em toda a Rússia, que terminaram com centenas de detidos, incluindo aposentados e menores de idade.

Foram quase 900 detenções em um só desses protestos, o de 9 de setembro, incluindo a de Ekaterina Ivanova, de 14 anos, aluna do oitavo ano do ensino fundamental em São Petersburgo, que nem sequer participava da manifestação contra o aumento da idade de aposentadoria, mas que foi detida e enviada a uma comissão disciplinar educacional.

“Temos um Governo autocrático que está derrubando pouco a pouco todas as instituições democráticas com a desculpa da segurança. Querem controlar tudo o que puder chegar a ter uma influência em qualquer esfera da vida e possa alimentar o tecido social de eleitores pensantes”, diz Alexander Solovyov, membro do Conselho Federal do movimento Rússia Aberta, na sede da entidade em Moscou. Sua organização tem tudo para estar na mira das autoridades: não só foi fundada e financiada por Mikhail Khodorkovski, um opositor exilado em Londres, como também tem entre seus objetivos prioritários fomentar a participação política, sobretudo em nível local.

O Rússia Aberta é legalmente uma “organização indesejável” na Rússia. As autoridades lhe atribuíram esse termo jurídico que seria aplicável só a ONGs estrangeiras cuja atividade “esteja dirigida à instigação de protestos e à desestabilização da situação política interna” – o que não é o seu caso. E concluíram que essa plataforma representa uma ameaça à segurança nacional. Há algumas semanas, uma de suas ativistas, Anastassia Shevchenko, se tornou a primeira pessoa do país a ser acusada de colaboração reiterada com uma organização indesejável.

Alexander Solovyov, membro do Conselho Federal do movimento Rússia Aberta, na sede da entidade em Moscou.
Alexander Solovyov, membro do Conselho Federal do movimento Rússia Aberta, na sede da entidade em Moscou.M. R. Sahuquillo

A contabilista de 37 anos, que começou no ativismo de direitos humanos e foi filiada ao Partido Comunista, foi detida em sua casa, em Rostov-do-Dom, e pode ser condenada a até seis anos de cadeia. Está sob prisão domiciliar desde 23 de janeiro, da qual só pôde sair por algumas horas, e após intensa pressão social, quando a saúde da sua filha mais velha, de 17 anos e que já estava doente, piorou. “Ela pôde vê-la só por algumas horas antes que finalmente morresse”, lamenta-se sua amiga Yana Goncharova.

O caso de Shevchenko fez disparar os alarmes das organizações de direitos civis russas e internacionais, que o viram como uma ameaça e exemplo de como as leis estão sendo usadas para intimidar e perseguir ativistas contra a corrupção, as fraudes eleitorais e as violações dos direitos humanos. “Nos últimos anos, as autoridades russas sufocaram e criminalizaram progressivamente a dissidência”, aponta Marie Struthers, diretora da Anistia Internacional para a Europa Oriental e Ásia Central.

Dissidentes – ou, pior, extremistas – são, segundo as autoridades policiais, Anna Pavlikova e sua amiga Masha Dubovik. Morenas, miúdas e apaixonadas pela biologia, ambas queriam estudar veterinária. E se encontravam para conversar sobre animais, plantas e flores na pequena casa de Pavlikova, em um bairro operário de prédios altos e cinzentos, onde mora com sua mãe, seus avós, sua irmã e o bebê desta. No final de 2017, as jovens (17 e 18 anos) encontraram um grupo do Telegram que falava entre outras coisas sobre ativismo em defesa dos animais, e se habituaram a entrar nos chats desse espaço virtual que, pouco a pouco, começou a adquirir um tom mais político. Depois, os participantes – com idades entre 17 e 38 anos – começaram a se reunir num McDonald’s e se tornaram um pouco mais ativos. Num dado momento, um homem um pouco mais velho entrou no chat e começou a animá-lo com reivindicações cada vez mais claras e mais políticas. Alugou um escritório para os membros do chat. Redigiu um manifesto. E deu ao grupo o retumbante nome de Nova Glória.

Yulia Pavlikova, mãe de Anna Pavlikova, num café de Moscou.
Yulia Pavlikova, mãe de Anna Pavlikova, num café de Moscou.M. R. Sahuquillo

Meses mais tarde, a três dias das eleições presidenciais, de madrugada, foram todos presos. Pavlikova e sete de seus colegas do Nova Glória são réus pela acusação de criar uma organização extremista. “Chegaram a dizer coisas como que queriam derrubar o Governo… São só um grupo de jovens que falavam de política e ecologia”, lamenta-se Yulia Pavlikova, a mãe de Anna. Conta que nunca se falou de política na sua família, que não há essa tradição. Tampouco a moça, que completou 18 anos já detida, jamais militou em nenhum partido, apenas demonstrava simpatia pelo opositor Navalni. Os advogados e os familiares dos réus – alguns, como Anna, que adoeceu na cadeia, estão hoje sob prisão domiciliar – acreditam que o caso contra eles foi “fabricado”. Um diagnóstico que alguns analistas compartilham.

A investigação se baseia nesse membro mais recente e mais velho; que escreveu os estatutos e insuflou os jovens, e foi também quem depois os denunciou. Agora desapareceu completamente do processo. “Não sabemos quem é realmente, mas acreditamos que seja um agente do FSB [Serviço Federal de Segurança, a herdeira da KGB]”, diz a mãe de Pavlikova. E acrescenta sem duvidar: “Achamos que usaram nossos filhos para servir de exemplo do que pode acontecer com quem erguer um pouco a voz”.

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