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A dura rotina de Daisy, Vinícius e Selmo na linha de frente das buscas em Brumadinho

EL PAÍS seguiu três integrantes dos bombeiros de Minas que há dias mergulham na lama da barragem da Vale para tentar encontrar os desaparecidos. "Estamos preparados, mas não acostumados. Ninguém nunca vai se acostumar"

Subtenente Selmo Andrade em operação de resgate em Brumadinho.
Subtenente Selmo Andrade em operação de resgate em Brumadinho.Douglas Magno

"Estamos todos preparados para um evento como esse, mas não acostumados. Ninguém nunca vai se acostumar como uma tragédia assim", sintetizou Selmo Andrade. Eram 7h da manhã do sábado e o subtenente do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais partia em um helicóptero para seu nono dia de trabalho ininterrupto desde que a barragem da Vale rompeu espalhando destruição em Brumadinho. "O cansaço a gente vai superando dia a dia. Aqui temos que entregar um pouquinho mais da gente, precisamos entender a dimensão desta devastação, precisamos completar nossa missão, retirar todos os desaparecidos."

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Andrade estava de férias com a família no Rio de Janeiro quando foi acionado pelo Corpo de Bombeiros no dia da tragédia, em 25 de janeiro. Em poucas horas chegou a Brumadinho, a 60 km de Belo Horizonte, para unir-se à equipe. Desde então, não parou mais. Na segunda-feira passada completou 50 anos fazendo o que considera um dom, ajudando no trabalho de resgate de vítimas e corpos – o balanço mais recente divulgado pelas autoridades indicava que, até a manhã desta segunda, o número de mortos chegava a 121 e havia ainda ao menos 205 pessoas desaparecidas. "Sabemos que temos uma família em casa que compreende, nos dá respaldo, porque temos um grande compromisso aqui. Somos pessoas comuns, vestimos fardas, temos casa, nome, CPF. Não somos heróis, não", disse ele.

O subtenente foi um dos protagonistas do meticuloso trabalho de regaste e buscas que o EL PAÍS acompanhou no sábado, 2 de fevereiro, na região do Córrego do Feijão, uma das mais afetadas pelo tsunami de lama. Se no início dos trabalhos o problema era a lama pastosa que dificultava o trabalho dos bombeiros, que ficavam submersos até a altura do peito ao tentar acessar alguns dos locais, agora, é a rigidez do material de rejeitos em algumas áreas que impõe novos desafios. "Já não temos tanta visibilidade, precisamos fazer escavações com maior dificuldade. Uma operação pode durar de 4 a 6 horas. Neste momento, entra a parte mais pesada de usar maquinário", explicava à reportagem o cabo Vinícius Expedito de Brito e Silva.

Silva conta que ao chegar à zona do desastre pela primeira vez, no dia 25, ninguém da equipe tinha noção do real tamanho da tragédia. "Pensamos que era uma nova Mariana. Era muito pior", conta ele, que, como o subtenente Andrade, também participou dos resgates do rompimento da barragem Fundão, da mineradora Samarco, controlada também pela Vale e a BHP, em 2015. Naquelas primeiras horas, o cabo ainda conseguiu resgatar pessoas com vida. "Em um das buscas na lama, vimos um senhor gritando. Fizemos silêncio e fomos direcionados pela voz dele. O senhor contou que, na hora da tragédia, estava no meio dos maquinários e conseguiu se arrastar por cerca de 200 metros", diz.

Cabo Vinícius Expedito de Brito e Silva, do Corpo de Bombeiros, em trabalho no córrego do Feijão.
Cabo Vinícius Expedito de Brito e Silva, do Corpo de Bombeiros, em trabalho no córrego do Feijão.Douglas Magno

O bombeiro e seus 250 companheiros na operação sabem que histórias como esta, com sobreviventes, se concentraram apenas nos primeiros dias e que tudo vai ficando mais lento e mais difícil à medida que o tempo passa. Na manhã de sábado, a árdua tarefa era tentar tirar da lama o que parecia ser um container soterrado. Dez bombeiros levaram uma motobomba e mangueiras para tentar desagregar, usando jatos de água, o objeto dos rejeitos que o detinham. Só para chegar ao local, eles tiveram que utilizar tapumes de madeira no solo para não escorregar ou afundar. Muitas vezes, pararam o bombeamento, já que a lama entupia a mangueira.

Em certo momento, tiveram que usar um equipamento cortante munido de uma substância abrasiva para auxiliar na operação e serrar parte do container. O calor de mais de 30 graus, o vento forte provocado pelos diversos helicópteros sobrevoando a região e o cheiro forte de material orgânico em decomposição tornavam o ambiente ainda mais hostil. De longe, vários curiosos acompanhavam o trabalho. Em alguns momentos, os agentes tiveram de gritar para os observadores se mantivessem a uma distância razoável.

Para fazer trabalhos assim, as equipes passam por cursos para aprender a lidar com enchentes, inundações, resgates e estruturas colapsadas. "É um treinamento de 30 dias em que os militares tem de ficar com o mínimo de conforto, acampando no mato, para preparar e testar o emocional e o físico", afirma o tenente-coronel Anderson Passos, no comando da operação de Brumadinho desde a última quinta-feira. "Infelizmente, é uma triste constatação de que nós temos que nos preparar para isso. Em Minas Gerais, temos uma população muito grande ao redor das minas", diz Passos, que explica que há ainda preparação e atendimento psicológico antes e depois de ações como a de Brumadinho.

Na região da Mina do Córrego do Feijão, os bombeiros têm usado um misto de técnica para escombros e enchentes. Além do maquinário, contam com 22 cães que ajudam na localização dos corpos. Os bombeiros quase sempre perfuram o solo com bastões para fazer uma espécie de "cone de odor", aumentando a possibilidade do cão identificar algum cheiro no terreno.

O trabalho de resgates em Brumadinho tem funcionado em uma ação coordenada entre o posto de comando, que fica localizado em uma das igrejas do Córrego do Feijão e ao lado de um campinho de futebol transformado em um heliporto, e as equipes em campo. Antes dos grupos partirem, há também uma reunião para instruções, onde se repassam as últimas notícias e se definem as estratégias. Passos explica que sempre há uma aeronave no chão e equipes preparadas para socorrer os bombeiros em caso de novos acidentes ou piora da situação.

Susto e apoio da comunidade

No domingo, 27 de janeiro, a possibilidade de que os problemas se agravassem chegou ao nível mais alto. Após uma chuva intensa em Brumadinho, houve um aumento repentino do nível do rio, bastante assoreado, e havia equipes que trabalhavam no local. Circulou ainda a informação de que outra barragem poderia se romper. "Foi complicado, tentamos nos deslocar para sair do rio, no entanto, o processo era lento e não sabíamos exatamente o que estava acontecendo. Mas a aeronave chegou rápido e nos retirou do local. Nós confiamos nos comandantes sempre, mas foi tenso", explica o subtenente Selmo Andrade.

Diante das inúmeras dificuldades, Andrade ressalta que, felizmente, a comunidade "abraçou a causa" e tem dado um apoio incondicional a corporação. "São os moradores que nos ajudam com alojamento, lavam as nossas roupas, que nos dão suporte na nossa retaguarda. Isso que nos fortalece", conta o subtenente, parte de uma corporação que vem recebendo o salário e o décimo terceiro parcelados porque o Governo do Estado, em crise, diz que não tem como pagar de outra forma.

Sargento Nathália Daisy Ribeiro.
Sargento Nathália Daisy Ribeiro.Douglas Magno

Natália Daisy Ribeiro, de 31 anos, terceira sargento do Corpo de Bombeiros, está em Brumadinho desde o dia da tragédia e também se agarra ao apoio da população para continuar firme. No primeiro dia de buscas, Daisy, como prefere ser chamada, chegou a trabalhar até duas horas da manhã, utilizando uma lanterna em uma operação perigosa já que a lama estava bastante escorregadia. "Como havia chances de achar sobreviventes, qualquer indício tínhamos que verificar. Não podíamos parar", explica. Na primeira noite, ela dormiu apenas duas horas, e às 4 horas da manhã já estava participando de mais um trabalho de resgate. "Não tem como não pensar que cada pessoas que recuperamos tem por trás uma família, uma história, mas tentamos seguir firme. Precisamos terminar a missão", diz.

Também sem folga desde o início das operações, Daisy, uma das dez mulheres da corporação no local, quer continuar nas buscas mesmo que tenha que ficar mais tempo longe de casa. Na última quarta-feira, ela não pode ver o filho que completava 14 anos. "Nunca tinha passado assim, sem nem poder ver no dia do aniversário". De longe, ela se emocionou com a compreensão dele e com as palavras que trocaram por telefone. "Ele me disse: 'Mãe, eu entendo como seu serviço é importante, fica aí porque tem muita gente que não vai passar o aniversário junto. Nós ainda vamos ter vários."

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