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Tribuna
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Política e misoginia: por que é a hora de as mulheres levarem uma cadeira portátil à mesa

As mulheres na política latino-americana parecem ter escutado o conselho de Shirley Chisholm: “Se eles não lhe oferecerem um lugar à mesa, carregue uma cadeira portátil”

A deputada norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez.
A deputada norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez.ALEX WONG (AFP)
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A política é ainda um território masculino. A maioria dos parlamentares são homens, e os modos de fazer política inspiram-se em valores masculinos, como força ou agressividade. A eleição de Jair Bolsonaro é o caso mais recente na América Latina: um personagem que faz flexão como quem diz bom-dia, sonha em vestir farda novamente e se apresenta como herói nacional. A política é mais do que um espaço masculino, é misógina. Expressões de rejeição às mulheres estão por toda parte – Bolsonaro disse à deputada Maria do Rosário que “ela não merecia ser estuprada”; Trump à Hillary “que como ela não conseguiu 'satisfazer' o marido, não poderia 'cumprir' as exigências de uma presidência do país”; ou Laura Chinchilla e Dilma Rousseff, que foram descritas como “marionetes” de outros homens de poder.

Uma das mais recentes vítimas da misoginia na política foi a recém-eleita deputada nos EUA Alexandria Ocasio-Cortez. A mulher é um fenômeno de popularidade e, por isso, um enigma à política de homens brancos que domina o congresso americano: Ocasio-Cortez é jovem, latina, uma liderança que surgiu das ruas de Nova Iorque. Quando ela assumiu em Washington, imagens circularam pelas redes sociais — uma delas falsa sobre sua intimidade e outra em que dançava com colegas de escola. A intenção era humilhá-la. Ela mesma interpretou o ocorrido com um contraponto de gênero na política. Paul Ryan é um político americano, também eleito aos 28 anos como ela — Ryan foi descrito como “gênio”, Ocasio-Cortez como uma “fraude”.

Esse jogo entre genialidade e fraude, força e fragilidade, é um dos pêndulos que perseguem as mulheres na política. É como se houvesse uma profecia para que fracassassem. As barreiras de acesso são imensas e se iniciam ainda na infância: às meninas não são apresentados modelos de mulheres na política em quem possam se inspirar, não nascem em famílias em que as mulheres são lideranças reconhecidas na esfera pública. A linhagem familiar passa a ser masculina, por isso a persistência de genealogias de homens na política, tal como os Calheiros no Brasil ou Samoza na Nicarágua. Quando as mulheres ultrapassam a barreira do reconhecimento e se elegem, são rapidamente desacreditadas pela sexualização de seus corpos ou pelo demérito de seus modos. O mais comum é descrevê-las como histéricas: Hillary Clinton não falava, “gritava”; Dilma Rousseff não era séria, mas “mal-humorada”.

A América Latina é ainda tímida na paridade de gênero – em 2017, em 11 países, a participação era de 30% das mulheres na política. Já estivemos melhores: em 2014, eram três presidentas na região. Hoje, nenhuma. Somente a Bolívia pode se orgulhar da paridade de gênero, 53% de mulheres no parlamento. O Brasil não está bem na composição — é o país que menos avançou na representação paritária de gênero na política: das 54 vagas para o Senado Federal, somente 7 mulheres foram eleitas. Mas por que precisamos de mulheres na política?

Porque há exemplos que mostram a transformação da vida das mulheres e meninas com mulheres na política. Ruanda é o país que lidera a proporção de mulheres no parlamento: as políticas de violência contra a mulher se tornaram prioridade no país. Iêmen, por outro lado, é um dos países com mais baixa representação de mulheres na política: a violação de direitos das mulheres é sistemática em nome da tradição e dos costumes. As mulheres são discriminadas em todos os aspectos da vida e, hoje, são a maioria vivendo em campos de refugiados ou favelas de Áden. É certo que os homens devem também assumir esse dever de representação, e muitos fazem bem. No entanto, a paridade de gênero na política é fundamental para o entendimento que a realidade da vida não é a mesma para mulheres e homens.

Ainda tomará tempo para que se transforme a paisagem de gênero na política dos países latino-americanos e caribenhos. Movimentos como o #MeToo ou #EleNão são marcos de reconhecimento das vozes das mulheres no espaço público. Não sabemos, no entanto, se serão suficientes para transformar o jogo político de forma que as mulheres busquem a política como carreira ou que sejam reconhecidas como lideranças. Enquanto isso, pequenas transformações acontecem — Ocasio-Cortez acabou de se encontrar com três novas deputadas brasileiras em Washington: Fernanda Melchiona, Sâmia Bomfim e Talíria Petrone. Se ainda são poucas, as mulheres na política latino-americana parecem haver escutado o conselho de Shirley Chisholm, a primeira mulher negra eleita ao congresso nos Estados Unidos: “Se eles não lhe oferecerem um lugar à mesa, carregue uma cadeira portátil”.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, professora da Universidade de Brasília.

Giselle Carino é argentina, cientista política e diretora da IPPF/WHR.

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