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Do bolsonarismo ao integralismo, como a extrema direita se organiza na Internet

O pesquisador David Nemer explica que, em 2019, os ultraconservadores se dividiram na Internet em três subgrupos. Em um deles estão os encapuzados que reivindicaram o ataque ao Porta dos Fundos

Bolsonaristas promovem manifestação na avenida Paulista, em São Paulo.
Bolsonaristas promovem manifestação na avenida Paulista, em São Paulo.Fernando Bizerra (EFE)

Jair Bolsonaro está prestes a completar um ano no cargo de presidente da República. Ao longo deste período, o território virtual que abriga o bolsonarismo, e que foi engrenagem essencial de sua campanha para chegar ao poder, sofreu algumas mudanças e se dividiu. A ideologia de extrema direita continua lá, intacta e até mais radical. Mas a união conseguida por Bolsonaro naquelas eleições se desfez. Os extremistas estão agora divididos em ao menos três subgrupos, segundo explica David Nemer, especialista em Antropologia da Informática. Em um deles, que ele nomeia de insurgentes, estão pessoas com o mesmo perfil dos homens encapuzados que reivindicaram o ataque com coquetel molotov à sede da produtora Porta dos Fundos, na madrugada de 24 de dezembro. Eles se identificam com o integralismo, o movimento fascista que surgiu nos anos 1930 e que, na era da Internet, ganha novo vigor.

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“Os insurgentes são mais militaristas e acabaram virando oposição, porque acham que Bolsonaro cedeu ao establishment e não é radical o suficiente. Acreditam que a única forma de salvar o país é fazendo uma insurgência armada para fechar o Congresso e o STF, e começar do zero. Eles falam muito de insurgência armada”, explica Nemer, que desde 2018 está presente em grupos de WhatsApp da extrema direita para monitorar seu comportamento.

Em vídeo que circula nas redes sociais desde a última quarta-feira, os encapuzados que assumiram o ataque ao Porta dos Fundos dizem ser parte do Comando de Insurgência Popular Nacional, recorda Nemer. Já a Frente Integralista Brasileira (FIB) soltou uma negando qualquer relação com os homens que assumiram o atentado. Ainda que não seja possível dizer que aquelas pessoas específicas formem parte dos grupos de WhatsApp que monitora ou que oficialmente estejam ligados aos integralistas, o pesquisador explica que “o tom nacionalista cristão e as ideias de atentar contra as universidades e as instituições” são as mesmas. Ele ainda lembra que o mesmo grupo que diz ter atacado a produtora invadiu a UniRio em 2018 e queimou bandeiras antifascistas, conforme também publicou a Ponte Jornalismo. Esses radicais atuam em fóruns da darkweb, mas também recrutam novas pessoas pelo WhatsApp e pelo Youtube. “Não consegui identificar um só canal no Youtube, porque eles são constantemente banidos ou colocados em quarentena. Então existe uma rotatividade”, completa o pesquisador.

O núcleo de propaganda é outro subgrupo que Nemer identificou após as eleições. Formado por bolsonaristas que apoiam o presidente incondicionalmente, tornou-se uma espécie de cão de guarda do Governo, atuando de acordo com a agenda política diária. Nas redes, essas pessoas defendem a gestão Bolsonaro em situações delicadas ― por exemplo, em momentos nos quais mede força com o Congresso ― ou quando se vê acuado ― como durante a crise internacional desatada pelos incêndios na Amazônia. “Bolsonaro precisa de um inimigo para alimentar a retórica do eles contra nós. E essas pessoas nas redes precisam de um inimigo para trabalhar. Nesse sentido, os peronistas se tornaram inimigos, Macron se tornou inimigo e até pessoas do PSL se tornaram inimigas. Agem como milícia virtual e até pessoas como Alexandre Frota e Joice Hasselmann se tornaram alvos”, explica Nemer, mencionando os dois deputados que romperam com Bolsonaro depois de se elegerem fazendo campanha para ele.

Por fim, o pesquisador também identificou o subgrupo que ele classifica como supremacistas sociais, que estão mais ligados aos evangélicos e podem ser tão radicais quanto os insurgentes. “Os supremacistas sociais não estão muito ligados à política do dia a dia, mas eles capitalizam em cima do discurso do presidente e de seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro. Compartilham conteúdo neonazista, racista, anti-LGBT, anti-Nordeste...”, explica Nemer. “Afinal, se o filho do presidente usa uma retórica parecida e não acontece nada com ele, então essas pessoas, que estão no anonimato, se sentem mais livres para compartilhar esses conteúdos. O Governo Bolsonaro valida muito esse pensamento racista que eles têm”.

Por que o bolsonarismo se dividiu em três subgrupos? O pesquisador aponta para a própria natureza das últimas eleições. “Bolsonaro abarca várias linhas de pensamento: a liberal na economia, a evangélica, a militar... Essas linhas são conflitantes, não andam de mãos dadas, como pudemos ver durante a briga entre os seguidores de Olavo de Carvalho e os militares”, argumenta. “Esses grupos estavam todos alinhados numa mensagem de eleger Bolsonaro, mas começaram a entrar em conflito. Umas pessoas queriam mais militarismo, outras queriam mais olavistas, outras mais evangélicos. É um reflexo do que Bolsonaro está fazendo na vida real: se ele demitia um militar, então os militaristas ficavam indignados...”, prossegue. Assim, as pessoas foram deixando os grupos de WhatsApp montados durante a campanha e criando outros mais de acordo com a linha que eles queriam que o presidente seguisse.

O método de sua pesquisa

Professor titular e pesquisador no Departamento de Estudos de Mídia na Universidade da Virgínia, Nemer realiza seu trabalho de campo em ambiente virtual, para averiguar como as pessoas se comportam e interagem entre si. No ano passado, identificou que as conversas dos grupos de família estavam mudando e adquirindo um tom mais político conforme as eleições se aproximavam. Algo aparentemente normal, mas que ganhou força com a difusão de conteúdos feitos de forma caseira ― isto é, pouco profissional ― com informações falsas ou distorcidas. Também foi um dos que identificou o comportamento de milícias virtuais que agem para perseguir determinadas figuras públicas e destruir reputações. Ele mesmo se tornou neste mês de dezembro um dos alvos dessas milícias virtuais. Ao publicar suas análises, conta ter recebido e-mails com ameaças e até mesmo uma foto sua andando em um local de São Paulo.

Com as eleições se aproximando em 2018, Nemer entrou em quatro grupos de WhatsApp bolsonaristas para monitorá-los. Ele identificou na ocasião uma forma de agir hierarquizada. No topo da pirâmide estavam algumas poucas pessoas anônimas que ele classifica como influencers, responsáveis por criar desinformações e distribuí-las nesses grupos. No meio da pirâmide estavam o que chama de exército voluntário, isto é, bolsonaristas que ficavam responsáveis por espalhar esses conteúdos pelas redes e grupos família. Na base estavam os brasileiros comuns, pessoas que conheceram Bolsonaro e impulsionaram sua candidatura. “Eram pessoas que não tinham espaço para debater e eram bombardeadas com conteúdos. Pela repetição, não havia espaço para dúvidas”.

Com a eleição de Bolsonaro, muitos desses brasileiros e brasileiras comuns foram deixando os grupos, que acabaram desinflando. Permaneceram os mais radicais, que se dividiram nos subgrupos explicados acima. Hoje, Nemer monitora cerca de uma dezena de grupos de WhatsApp e já colheu relatos de pessoas que dizem ter recebido quantias de dinheiro para impulsionar conteúdo falso nas redes.

“É uma minoria, uma coisa menor do que era antes, mas é uma minoria extrema e radical. Temos que prestar atenção porque esses espaços obscuros, escondidos, promovem uma radicalização. A pessoa passa a não ter mais senso crítico”, explica. Essa minoria hoje trabalha a partir da política do medo, tentando criar um passado mítico, que não aconteceu, para motivar as pessoas a saírem para votar ou protestar, segundo explica. “A desinformação não quer só puxar uma agenda política. Ela aliena você da verdade e tira todo o seu pensamento crítico”, completa.

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