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Novo marco do saneamento é teste para setor privado levar esgoto com preço justo a metade do Brasil

Projeto abre caminho a empresas para estender rede de água e esgoto a 100 milhões de brasileiros até 2033 com 700 bilhões de investimento. Críticos temem prejuízo a cidades mais pobres e tarifas abusivas

Cidade no Estado de Alagoas.
Cidade no Estado de Alagoas.Marcello Casal Jr (Ag. Brasil)

A Câmara aprovou, no início do mês, o texto-base do projeto que estabelece um novo marco legal do saneamento básico no Brasil, um dos maiores gargalos do país. Até hoje, quase metade da população brasileira não possui acesso à rede de esgoto. Um dos pontos principais do projeto, que agora segue para votação no Senado em 2020, abre caminho para que iniciativa privada atue com mais força no setor e institui um regime de licitações para que os municípios escolham as empresas que irão prestar serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto. Acabando, assim, com o direito de preferência pelas companhias públicas estaduais de saneamento. De um lado, apoiadores do projeto defendem que essa abertura irá trazer mais eficiência, competição e investimentos, enquanto a ala da oposição teme que a mudança da regra prejudique os municípios mais pobres - que não seriam tão atrativos. Também há um temor de que as tarifas subam sem controle e que uma insegurança jurídica seja instaurada no setor.

No cerne do texto também está a criação de uma nova meta de universalização de acesso ao saneamento no país, que foi estabelecida para até dezembro de 2033. Todos os novos contratos terão que ter esse objetivo no horizonte. No caso dos acordos já vigentes, os chamados “contratos de programa”, haverá a possibilidade de se adequar à nova meta até março de 2022, podendo assim renovar o contrato por mais 30 anos. O ministro da economia, Paulo Guedes, tem se mostrado um entusiasta do projeto aprovado na Câmara e acredita que o saneamento básico repetirá a ampliação de acesso pela qual passou o mercado de telefonia celular após a privatização das companhias telefônicas em 1998. Até então, o Brasil dependia somente do Estado para investir em telecomunicações e o brasileiro enfrentava filas de ano para conseguir comprar uma linha cara, apelando para o aluguel de telefones. “Ninguém tinha saneamento e agora vai ter”, declarou em uma palestra em Brasília em dezembro.

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Na avaliação de especialistas, os avanços nos serviços de saneamento têm sido muito lentos. Hoje, o investimento anual na área é menos da metade do necessário, segundo Percy Soares Neto, diretor da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon). São necessários, de acordo com estudos, 700 bilhões de reais para bater a meta de universalizar o saneamento até 2033. “Precisamos de 45 bilhões por ano. E o país não consegue investir mais do que 11 bilhões de reais anualmente. É muito aquém do que o consumidor brasileiro precisa”, explica Soares Neto.

O mau desempenho traz consequências para a população e sobrecarrega o sistema de saúde. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cada dólar investido em água e saneamento resulta em uma economia de 4,3 dólares em saúde.

Para o diretor da Abcon, o novo marco legal possui três novos pilares: competição, qualidade de regulação e prestação regionalizada. "O ponto principal de mudança realmente é abrir um espaço de competição entre públicas e privadas. A empresa pública que quiser prestar serviço terá que ser mais competitiva que seu concorrente. Será preciso melhorar o serviço e mostrar uma capacidade de investimento e ter uma tarifa adequada", afirma.

Soares Neto ressalta que, do total de investimentos feitos no país em saneamento, 20% vem do setor privado, ainda que ele esteja presente em apenas 6% dos municípios. "O investimento é muito maior proporcionalmente'.

Regulação centralizada

A Agência Nacional de Águas (ANA), hoje responsável por regular o acesso e o uso dos recursos hídricos, passará, segundo o novo marco legal, a desempenhar o papel de reguladora do setor de saneamento básico. Caberá à agência estabelecer padrões de qualidade, padronizar metas do setor e determinar tarifas. “Hoje temos 50 agências reguladoras no setor de saneamento no país, sem uma harmonia. É confuso para o setor de infraestrutura. O investidor que vem de fora se pergunta: qual a regra de regulação que tenho que seguir? Fica difícil de entender”, diz Soares Neto.

O diretor da ABES, Alceu Bittencourt, pondera que apesar de ser interessante colocar uma agência federal para atuar no setor, ela ainda não tem capacidade de operar os serviços. "Hoje você possui nos Estados agências reguladoras que já acumularam experiência, possui uma regulação que avançou muito. Como a maior parte da operação é regionalizada, há subsídio cruzado que permite operar em cidades pequenas.Não precisa começar do nada. Colocar a ANA é uma boa proposta, mas colocá-la assim é uma operação autoritária", afirma Bittencourt.

Na avaliação do diretor da ABES, extinguir os “contratos de programa” - sem concorrência e fechados diretamente entre os titulares dos serviços e as concessionárias- também é polêmico. “Poderiam aumentar a força do privado sim, mas sem desmontar as companhias públicas existentes, combinar público e privado, fazer subconcessões. Muitos contratos precisam definir melhor as metas, mas acho que deveria ser uma opção dos municípios abrir ou não para licitação, mas continuar evoluindo na regulação de todos”, explica.

A proposta aprovada na Câmara prevê também que o saneamento passe a ser prestado em blocos de municípios de forma regionalizada. Esse item do texto tenta responder às críticas da oposição, que alega que municípios muito pequenos poderiam ficar desassistidos já que não são viáveis financeiramente. Ao aglutinar municípios viáveis - com resultado positivo no equilíbrio de receita e despesa- e inviáveis, a operação continuaria atrativa.

Soares Neto afirma que hoje 58% das operações privadas no país estão em municípios de 20.000 habitantes. “Se município pequeno não interessa como alega a oposição, por que mais da metade está neles?”, questiona.

Viviane Borges, presidente da Associação dos Engenheiros da Sabesp, alerta que, em tese, a ideia de aglutinar os municípios parece interessante, mas na prática é muito mais complexa. “Busque uma região onde você tem um município grande superavitário e um bloco de minoritários que poderiam ser agregados a esse negócio. A união de blocos regionais não é algo fácil. Há regiões no interior do Nordeste em que todos os municípios são deficitários. Por isso precisamos ver essa regionalização na prática”, afirma.

Borges ressalta que o Brasil está indo na contramão da tendência dos países europeus. “Os países já passaram por operações privadas e agora elas estão sendo regidas por empresas públicas. Os motivos são três: falta de investimento, ineficiência e alta de tarifas. Essas foram as reclamações”, afirma.

Bittencourt concorda que, no mundo, são pouquíssimos os países que fizeram um sistema inteiramente privado. “Você precisa ter uma ação do governo planejando e organizando. O centro de uma mudança não deveria ser privilegiar público ou privado e sim a promoção da eficiência. A preocupação central é que do jeito que foi proposto pode desorganizar o setor”, explica.

BNDES como articulador da agenda

O Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) tem se proposto a assumir um papel relevante no novo marco do saneamento. O chefe do Departamento de Estruturação de Parcerias 1 do banco, Guilherme Albuquerque, afirmou que os projetos do BNDES para a atração de capital privado para saneamento estimam investimentos de 61,7 bilhões de reais ao longo dos próximos 35 anos. Desse total, 15,9 bilhões de reais estão previstos para os primeiros cinco anos.

Para o presidente do banco, Gustavo Montezano, não faltam recursos para investir e sim uma melhor gestão do dinheiro. “A gente quer ser o principal articulador nacional na agenda do saneamento. Com o S de social, ele [social] é o nosso carro-chefe, porque como a gente pode pensar em educação para quem não tem saneamento, em saúde para quem não tem saneamento, desenvolvimento econômico e proteção ambiental, sem saneamento. Para isso é necessário modelagem financeira e conversar com investidores, político”, afirmou. "Se Deus quiser, com a aprovação do Marco do Saneamento, a gente abre uma nova fase de tratamento de água, de proteção de água e de proteção ambiental para o povo brasileiro”, defendeu.

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