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Caso João de Deus
Coluna
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O novo poder das mulheres para romper com o silêncio imposto pelo patriarcado

Se as redes trazem risco às mulheres, como o discurso do ódio, o movimento “#metoo” ou “NiUnaMenos” foram ondas que tiraram as vítimas do silêncio para transformá-las em protagonistas da história

João de Deus escoltado pela polícia para cumprir a ordem de prisão.
João de Deus escoltado pela polícia para cumprir a ordem de prisão.Igo Estrela / Metrópoles (EFE)
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João de Deus tem nome divino, era curandeiro e líder espiritual no interior de Goiás, em uma cidade escondida no mapa brasileiro. Com poderes além do humano, fazia cirurgias e tratamentos pouco convencionais. Foi preso por charlatanismo no passado, acusado de exercício ilegal da medicina. Recebeu visitas ilustres, como juízes da suprema corte ou presidentes de países, celebridades internacionais, como Oprah Winfrey, e fez-se milionário. Era um intocável pelos poderes de cura, por isso o segredo do horror da violência sexual contra mulheres e meninas foi escondido por tanto tempo.

Foi preciso um movimento iniciado por uma única mulher, Zahira Maus, uma coreógrafa holandesa, em um post de Facebook, para desencadear uma onda de 500 mulheres com o semelhante “#metoo”. Zahira contou sua história com o constrangimento comum às vítimas que acusam homens de poder: por um lado, sua voz era o grito esperado por outras mulheres, por outro, sabia que seria só o testemunho de uma mulher comum contra um homem santo. Havia ainda uma responsabilidade adicional à Zahira e a todas as outras vítimas – elas eram crentes no poder de João de Deus, se viam desafiando um patrimônio de milagre à humanidade.

Antes de Zahira, outras mulheres provocaram a justiça brasileira acusando João de Deus de violência sexual e estupro. Entre as vítimas, estavam mulheres e meninas. Os casos foram arquivados pela Justiça por “falta de provas”. Era apenas a palavra da mulher contra quem prometia a salvação aos sem esperança. Foram décadas de silêncio até que o post de Zahira desencadeasse um movimento inesperado, sem fronteiras e sem liderança. Elas surgem com enredo semelhante de violência a cada dia. Vivem em diferentes países, não há diferenças de cor, classe ou idade —são apenas mulheres que sentiram vergonha por terem sido violentadas por alguém com tanto poder.

Como as vítimas de Harvey Weinstein, essas mulheres tinham medo. Essa é a razão para o segredo da violência ser um instrumento de controle dos homens violentadores e com poder. Weinstein era alguém com o poder mágico de transformar uma jovem mulher em estrela de Hollywood; João de Deus, um superhomem que prometia afugentar a morte ou a doença. Em cada templo, cada qual era divino ao seu modo: silenciavam as mulheres pelo medo do fracasso ou da morte; contavam com a cumplicidade dos homens que muito sabiam e não estranhavam a violência sexual como forma de exercício do poder masculino.

Foi preciso o novo poder para fazer frente ao velho poder dos homens. Se as redes sociais trazem risco às mulheres, como o discurso do ódio ou a pornografia infantil de meninas, há algo de revolucionário: o movimento “#metoo” ou “NiUnaMenos” foram ondas de mulheres que saíram do silêncio das vítimas para as protagonistas da história. João de Deus está preso, Weinstein em campanha para desacreditar suas vítimas, alegando terem sido encontros sexuais consensuais. Não nos cabe a verdade da Justiça criminal neste momento, o que importa é que as mulheres encontraram nas redes sem fronteiras um novo poder para fazer frente ao velho poder patriarcal que as silenciava. Até mesmo diante do arcaico poder divino.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, professora da Universidade de Brasília

Giselle Carino é argentina, cientista política e diretora da IPPF/WHR

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