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Devolução dos tesouros africanos coloca em alerta os museus etnográficos

O polêmico relatório francês que defende a restituição das obras espoliadas poderia esvaziar boa parte das coleções ocidentais

Álex Vicente
Uma das peças do Museu de Civilizações Negras, em Dacar (Senegal), inaugurado em 6 de dezembro.
Uma das peças do Museu de Civilizações Negras, em Dacar (Senegal), inaugurado em 6 de dezembro.SEYLLOU (AFP)

Os tesouros espoliados durante o colonialismo voltarão a pertencer a seus legítimos proprietários? A pergunta está lançada desde que, no fim de novembro, foi divulgado um relatório oficial encomendado por Emmanuel Macron a dois especialistas que defendem devolver ao continente africano todas as obras e objetos que tenham chegado às coleções francesas de forma irregular. Poderia ser o início de uma revolução das relações bilaterais entre Europa e suas antigas colônias. Ou virar letra morta, se não sair do que já se anuncia como um labirinto jurídico, administrativo e também político. Os museus europeus reagiram com diplomacia, apesar de não esconderem sua hostilidade diante dos termos do documento francês. De outro lado, os países africanos começam a reclamar o que consideram que lhes pertence, animados por um novo clima cultural no qual parecem superar-se os tabus de outros tempos.

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Os autores do relatório são a historiadora francesa Bénédicte Savoy e o economista senegalês Felwine Sarr. Sua recomendação principal é que, toda vez que um país africano solicitar a restituição de um objeto, a França a aceite se não conseguir demonstrar que não foi roubado ou espoliado. Apesar de tudo, afirmam que não vai ocorrer uma saída em massa de obras. “A questão não é esvaziar os museus europeus para encher os africanos. Trata-se de repensar o passado para refletir sobre o futuro, instaurando um novo diálogo entre os dois continentes”, afirma Savoy durante uma entrevista em Paris. A historiadora também defende a criticada decisão de concentrar essa devolução das obras subsaarianas. “Essa parte da África se viu desprovida de todo seu patrimônio: calcula-se que 90% do total se encontre em coleções ocidentais. Esse não é o caso do Egito e da Grécia, da América do Sul ou da Oceania”, justifica a especialista. E atribui o que está acontecendo a uma mudança geracional: “Está chegando uma juventude que cresceu em um mundo globalizado e que já não ignora que a riqueza europeia teve um custo para outros lugares do mundo”.

O relatório também representa um desafio para as capitais europeias com um volume de obras das antigas colônias semelhante ao da França, onde haveria pelo menos 90.000 objetos procedentes da África subsaariana; 70.000 deles são mantidos no Museu do Quai Branly, em Paris. Londres, Berlim, Bruxelas e Viena deram, nos últimos anos, sinais de abertura. Por exemplo, o Museu Britânico lidera o grupo de diálogo da cidade de Benin, que encabeça a criação de um centro etnográfico na antiga Edo, situada ao sul da atual Nigéria, com empréstimos que cederia ao grande museu londrino. Na Alemanha, o Ministério da Cultura anunciou há alguns meses novas subvenções para pesquisar a origem das obras que serão expostas no novo Humboldt Forum, em pleno debate público sobre a questão. Na Bélgica, o antigo Museu Real da África Central, que possui 180.000 objetos originários do continente, reabriu no início do mês rebatizado como Museu África e com um percurso repensado, que pretende refletir uma simetria entre europeus e africanos, segundo seus responsáveis. Apesar de tudo, o relatório de Macron faz com que todos esses gestos pareçam, de repente, tímidos demais.

Uma das salas do museu do Quai Branly de Paris, que abriga até 70.000 peças da África subsaariana.
Uma das salas do museu do Quai Branly de Paris, que abriga até 70.000 peças da África subsaariana.ludovic marin (afp / getty images)

Alguns países africanos já se movimentam. Por exemplo, o Senegal pensa em exigir que tudo lhe seja devolvido. “Estamos prontos para encontrar soluções com a França. Mas se forem identificadas 10.000 peças em suas coleções, pediremos as 10.000”, disse o ministro senegalês da Cultura, Abdou Latif Coulibaly, na apresentação do novo Museu das Civilizações Negras, inaugurado no início de dezembro em Dacar. Na Costa do Marfim, o Governo tem na mão uma lista de “uma centena de obras-primas” que pensa em solicitar à França. E, nesta semana, a República Democrática do Congo anunciou que também quer recuperar uma série de obras que estão na Bélgica para expô-las em um novo museu que abrirá em Kinshasa em 2019. No momento, Macron já decretou a devolução imediata de 26 obras da dinastia Daomé que foram roubadas em 1892 por líderes militares franceses. Se os estudos jurídicos forem favoráveis, logo voltarão ao Benin. O primeiro de uma longa série de retornos inexoráveis?

Os museus consultados consideram que o documento provoca um debate necessário, apesar de nenhum demonstrar entusiasmo excessivo diante de suas recomendações. “Ainda estamos digerindo o informe e avaliando suas consequências, mas é um documento importante com o qual temos o interesse de interagir”, afirma Sam Nixon, chefe do departamento africano do Museu Britânico. Ainda assim, seguir a via francesa não lhe parece uma opção viável. “Nossos administradores foram claros sobre os benefícios de ter a coleção aqui, dentro do museu. A intenção é que as pessoas possam ver e aprender a partir de uma coleção sem igual, no sentido de que é um lugar único para contar histórias interculturais”, acrescenta Nixon. O presidente do patronato do museu, Richard Lambert, lembrou há alguns dias que não é possível abrir mão de nenhum objeto de sua coleção, como determina a lei de museus britânica. Mas a regulamentação francesa é quase idêntica, coisa que não impede que o Governo francês estude mudá-la. “Se for preciso aprovar uma lei, faremos isso”, anunciou no domingo passado o novo ministro da Cultura francês, Franck Riester.

Outros museus dissimulam pior suas divergências. O diretor do Victoria & Albert Museum, Tristam Hunt, cumprimentou “a honestidade e a clareza” do relatório, apesar de “não estar plenamente convencido de seu enfoque”. O responsável pelo Museu de Arqueologia de Cambridge, Nicolas Thomas, também é reticente. “Fascinados pela perspectiva de uma vitória moral veloz, seus autores não pensam de forma estratégica ou prática sobre como as obras de arte podem circular e se tornar acessíveis”, afirma. O diretor do Museu de Culturas do Mundo, da Holanda, Stijn Schoonderwoerd, por sua vez, afirma que as recomendações do relatório são “inovadoras, diretas e ambiciosas”. Isso não evita que tenha muitas reservas: “Para nós, a moral e a ética também são uma preocupação primordial. Mas os objetos que chegaram aos Países Baixos durante os últimos quatro séculos de relações coloniais não entram necessariamente na categoria de arte espoliada. É preciso uma abordagem matizada”.

Que destino terão as obras se voltarem à África? No continente há 500 museus e várias dezenas de outros em construção. Mas a retórica que impera até agora sustentava que não reuniam as condições necessárias para conservá-los. “O argumento sobre a incapacidade africana para acolher suas próprias obras é pura condescendência”, protesta Felwine Sarr, coautor do informe da discórdia, em conversação telefônica. “Países como África do Sul, Nigéria, Camarões, Quênia ou Senegal não têm problemas para receber as obras. Outros não estão prontos, mas precisamos lhes dar um tempo. Na verdade, generaliza-se sobre essa incapacidade a partir de casos individuais. Na Europa desaparecem obras dos museus regularmente sem que ninguém coloque em dúvida sua capacidade de mantê-las”, argumenta Sarr.

De seu escritório em Nova York, o intelectual senegalês Souleyman Bachir Diagne, diretor do Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Colúmbia, dá um apoio incondicional ao informe. Mas adverte que a falta de infraestrutura é “uma realidade que é preciso considerar”. “Em alguns países africanos há uma grande indiferença quanto à cultura e ao patrimônio. Espero que o que está acontecendo agora os faça abrir os olhos”, afirma Diagne.

Retomando o subtítulo do estudo francês, defende “uma nova ética relacional” com a África, que há não é “aquele lugar com o qual mantínhamos vínculos apenas humanitários, mas um continente novo com grande potencial econômico”.

Para o filósofo camaronês Achille Mbembe, autor do influente ensaio Crítica da razão negra, as restituições são um gesto de reparação necessário para sair do esquema de dominação do século passado. “O debate avançou em pouco tempo, porque emergiu uma nova consciência na África e suas diásporas, arraigada no desejo histórico de que o continente volte a ser uma potencia própria”, afirma. A colecionadora franco-beninense Marie-Cécile Zinsou, que preside uma fundação de arte contemporânea em Cotonu, também considera que as recomendações do relatório são “históricas”, porque possibilitarão que os africanos recuperem seu patrimônio. “Mas há museus que se encontram em um estado calamitoso. E vamos ver se nossos dirigentes se mobilizam para recuperar essas obras. No momento, vejo mais palavras do que ações”, afirma Zinsou.

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