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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O doutor Chirinos

Os discursos do psiquiatra em Sangue no divã parecem-se aos do comandante Chávez, virando uma chuva de injurias contra a corrupta democracia e prometendo o paraíso a seus crentes

Mario Vargas Llosa
Fernando Vicente

Por seu prontuário, seu narcisismo, seus delírios e seus crimes, parece um homem inventado, mas o doutor Edmundo Chirinos existiu, e os espanhóis que vão ao teatro acabam de comprová-lo vendo em cena o espetáculo Sangre en el Diván, dirigido e protagonizado pelo diretor e ator venezuelano Héctor Manrique.

Nesse monólogo de uma hora e meia que mantém o público sobressaltado e meio afogado pelas gargalhadas, o próprio doutor Chirinos nos conta sua odisseia: foi psiquiatra, reitor da Universidade Central da Venezuela, membro de sua Assembleia Constituinte, candidato à presidência lançado pelo Partido Comunista, e teve entre seus pacientes nada menos que três presidentes da República: Jaime Lusinchi, Rafael Caldera e o comandante Hugo Chávez. Homem influente e poderoso, por seu consultório passaram milhares de pacientes, dos quais abusou com frequência e inclusive assassinou, como a estudante Roxana Vargas, um crime pelo qual passou seus últimos anos de vida na prisão.

O mais extraordinário do espetáculo talvez não seja a esplêndida recriação que Héctor Manrique faz de tal personagem, vestindo-se e desvestindo-se, cantando, dançando e delirando sem trégua, exibindo sua egolatria e excesso até extremos disparatados, mas sim que tudo aquilo que o doutor Chirinos diz no palco ele disse de verdade a uma jornalista, Ibéyise Pacheco, que gravou e depois publicou o material em um livro que leva o mesmo título da peça teatral, adaptada e dirigida pelo próprio Héctor Manrique.

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Conheci Héctor há muitos anos, em Caracas, porque dirigiu uma peça minha, Al Pie del Támesis – uma bela montagem, diga-se de passagem –, que depois levou à Colômbia. O comandante Chávez estava só começando a obra de demolição de uma Venezuela cuja vida cultural ainda fosforescia por sua diversidade e riqueza. Não só o teatro como também a dança, a pintura, a música e a literatura. Mas o país vivia um perigoso deslumbramento com o militar golpista, cujo levante contra o Governo legítimo de Carlos Andrés Pérez havia sido reprimido por um Exército leal às leis e à Constituição. Como é sabido, o comandante sedicioso, em vez de ser julgado, foi indultado pelo presidente Rafael Caldera e se tornou em pouco tempo um líder popular que arrasou nas eleições.

Custava-me entender isso. Como um país que tinha sofrido ditaduras tão ferozes no passado e que tinha lutado com tanta fidalguia contra o regime espúrio de um Marcos Pérez Jiménez podia cair rendido à demagogia de um novo caudilhozinho truculento, inculto e mal falado? Com uma exceção, entretanto: os intelectuais. Eles foram muito mais lúcidos que seus compatriotas. Com poucas exceções – praticamente caberiam numa só mão –, mantiveram-se na oposição ou pelo menos guardando uma distância prudente, sem participar do deslumbramento coletivo, da absurda crença, tantas vezes desmentida pela história, de que um homem forte poderia resolver todos os problemas sem as tramas burocráticas da inepta democracia.

A Venezuela daqueles anos, com suas grandes exposições, seus festivais internacionais de música e de teatro, com suas editoras flamejantes, seus museus e seus encontros e congressos que atraíam a Caracas os pensadores, escritores e artistas mais celebrados no mundo, agora está morta e enterrada. E levará muitos anos e enormes esforços para ser ressuscitada.

Os discursos que o delitivo doutor Edmundo Chirinos regurgita perante o público em Sangre en el Diván se parecem muito com os do comandante Chávez, lançando uma chuva de impropérios contra a morosa e corrupta democracia e prometendo o paraíso imediato a seus crentes. Os venezuelanos que acreditaram nele se deram tão mal quanto os iludidos pacientes do psiquiatra que terminavam deixando seu sangue no divã. Muitos deles agora comem só o que encontram no lixo.

A peça que Héctor Manrique interpreta não foi proibida na Venezuela – pelo contrário, acumula quatro anos em cartaz e muitas dezenas de milhares de espectadores –, talvez porque os censores sejam menos perceptivos do que seu triste ofício exigiria, e, também porque, à primeira vista, Sangre en el Diván poderia parecer um caso à parte, o de um indivíduo fora do comum, a tão famosa exceção à regra, a “mosca branca”.

Entretanto, não é assim. Muito do que depois viria a ocorrer na Venezuela é mostrado, de forma resumida sobre o palco, na sinistra odisseia do doutor Edmundo Chirinos, no seu poder acumulado a partir da fraude e sua loquacidade doentia. Renunciar à razão pode dar frutos extraordinários nos campos da poesia, a ficção e a arte, como sustentaram o surrealismo e outros movimentos de vanguarda. Mas entregar-se à injustiça, ao puramente emotivo e passional, é muito perigoso na vida social e política, um caminho seguro para a ruína econômica, a ditadura, enfim, para todos esses desastres que levaram um dos países mais ricos do mundo a se tornar um dos mais pobres e a ver milhões de seus habitantes se lançarem ao exílio, mesmo que seja andando, para não morrer de fome.

De nada disso falamos com Héctor Manrique quando desci aos camarins do teatro para lhe dar um abraço e parabenizá-lo. Perguntei-lhe se é verdade que não há uma palavra em seu monólogo que o doutor Chirinos não tenha dito de verdade, e me confirmou que é assim, e me apresentou ainda a Ibéyise Pacheco, que foi quem o entrevistou durante muitas horas na cela da prisão onde estava confinado pelo assassinato de uma paciente. Eu gostaria de ter recordado com Héctor aqueles lindos anos em que a literatura e o teatro nos pareciam as coisas mais importantes do mundo, e também toda a Venezuela parecia acreditar nisso, a julgar pelas revistas culturais que saíam a cada semana e pela quantidade de novos escritores, artistas e companhias de teatro e de concertos que surgiam e disputavam as noites de Caracas. Aquilo ocorria não só na capital, mas também no interior do país, onde apareciam novas universidades e novos artistas. A Venezuela inteira parecia tomada então por uma avidez frenética de cultura e criatividade. E de lembrar grandes amigos que já não estão mais aqui, como Salvador Garmendia e Adriano González León, o autor de País Portátil, um magnífico romance, que, dizem-me, caiu subitamente morto no bar onde sempre tomava a saideira, e daquele grupo revoltoso de jovens, El Techo de la Ballena, que semeou Caracas de escândalos anarquistas.

A única coisa boa das ditaduras é que, embora provoquem desastres, sempre morrem. Com o passar do tempo, sua lembrança vai se empobrecendo e, às vezes, os povos que as padecem chegam a se esquecer que as padeceram. Mas duvido que ocorra tão cedo com a que transformou a Venezuela num país que não é nem sombra daquele que conheci em meados dos anos sessenta. Tomara que o horror que viveu todos estes anos, transformada praticamente em um dos sanguinários delírios do doutor Edmundo Chirinos, a poupe de no futuro voltar a renunciar à razão e à sensatez, que na política são a única garantia de não perder a liberdade.

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