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Coluna
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O fascismo que se aproxima

Milhares de acadêmicos ganharão a vida durante séculos estudando por que ocorreu o que começa a ocorrer agora

Enric González
Manifestação do grupo radical Casapound em Roma em 1º de março de 2018.
Manifestação do grupo radical Casapound em Roma em 1º de março de 2018.Andreas Solaro (Getty)

O fascismo pode ser definido de muitas maneiras, todas elas parciais. Dependendo da época e do lugar, consistiu no sequestro do Estado por parte de interesses privados, ou no enquadramento da sociedade em um esquema de quartel, ou na criação de mecanismos mais ou menos brutais para eliminar a dissidência diante do poder. Às vezes essas características se combinam. Em geral, o fascismo requer um líder carismático. Mas não sempre. Um regime pode parecer fascista sem ser: a Argentina de Perón. E pode ser fascista sem parecer: o Portugal de Oliveira Salazar. Dá para fazer muitas especulações sobre o fascismo.

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Talvez a essência do fascismo consista em algo bastante simples: uma reação agressiva da maioria contra as minorias. As maiorias, é claro, são algo contingente. Não existem por si só. É preciso criá-las ou pelo menos dar-lhes forma, e para isso é necessário encontrar sentimentos que muitos possam compartilhar (o fascismo não se baseia em ideias, mas em sentimentos) e estimulá-los ao máximo. O medo, a raça, a pátria, a bandeira, a religião, a frustração, o passado (neste caso, quase como antônimo da história): elementos que não resistem a uma análise superficial e que, ao mesmo tempo, podem suscitar violentas emoções coletivas.

As causas para que o fascismo esteja crescendo dariam para encher uma enciclopédia. Dos disparates fiscais do neoliberalismo à angústia com a revolução tecnológica e a destruição do trabalho como valor, do aviltamento de certas elites à glorificação do egoísmo, das mudanças provocadas pela globalização e pelos movimentos migratórios ao enfraquecimento das instituições nacionais frente a novas instituições internacionais que não conseguiram ser suficientemente eficazes e representativas. Milhares de acadêmicos ganharão a vida durante séculos estudando por que ocorreu o que começa a ocorrer agora.

Voltemos ao mais simples: maioria contra minorias. O fascismo de hoje não se proclama fascista, mas democrático, em parte porque a palavra “fascismo” continua provocando uma ampla rejeição e em parte porque apela a uma das definições da democracia, a mais parcial, tão parcial que beira a falsidade: o governo da maioria. O abuso do termo “democracia” (que, como se costuma lembrar, jamais aparece em uma Constituição tão eficiente como a elaborada pelos Pais Fundadores dos Estados Unidos) borrou o conceito liberal cunhado durante os dois últimos séculos: um sistema que permite o governo da maioria e, ao mesmo tempo, garante os direitos das minorias.

A esquerda, seja lá o que isso for, deveria perguntar a si mesma por que leva décadas articulando seu projeto em torno das minorias. Para ser mais exato: em torno de um processo de criação, exaltação e radicalização de minorias que, levado a absurdo (e no absurdo estamos), gera um mosaico de peças impossíveis de encaixar. Como vai ser possível montar esse quebra-cabeças, se cada peça compete com a outra por um mesmo espaço e tem objetivos incompatíveis com os da peça ao lado?

O fascismo que se aproxima conta com a capacidade de destruir a democracia em nome da democracia. Como em outras ocasiões, só pode ser derrotado por uma maioria que defenda os delicados e esquivos princípios da convivência. Em outras ocasiões, foi impossível compor essa maioria. Parece que hoje também.

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